Por Marcus Paulo de Freitas
A partir das discussões promovidas pelo movimento queer ou pós-feminista, pretendo analisar brevemente a canção e vídeo de “blasFêmea – Mulher”, composta por Linn da Quebrada, a partir da perspectiva teórica da autora Beatriz Preciado, em seu artigo “Multidões Queer: notas para uma política dos ‘anormais’” (2011). Sendo o foco dessa articulação a categoria “gênero” e as formas de subjugação sexopolíticas, o objetivo desse texto é pensar o corpo queer enquanto “desterritorialização da heterossexualidade”, tanto por meio da teoria feminista, quanto pela performance de (terrorismo de) gênero proposta por Linn da Quebrada.
Se autonomeando “bicha, trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Performer e terrorista de gênero”¹, Linn da Quebrada, 25 anos, é ativista do movimento LGBT, ou melhor seria dizer – em suas palavras – movimento TLGB (dando destaque a letra da sigla que corresponde às travestis, transsexuais e transgêneros). Através do funk, Linn reclama o direito à vida para toda comunidade TLGB no país que mais a mata no mundo. Segundo ela, em um vídeo publicado pelo canal Melissa Channel², “existem tantos gêneros e tantos sexos quanto corpos, só que a gente tá habituado em pensar apenas dois” e por isso há opressão, uma vez que “a sociedade só sabe tratar dois tipos de pessoa: homens e mulheres. Se você não se enquadra em nenhum dos dois, você me deixa numa situação que eu não sei como te tratar (…) eu posso te tratar como um nada”, aponta Linn, que defende o que chama de “terrorismo de gênero” como forma de se posicionar frente ao “CIStema”. Quanto ao por quê de utilizar a expressão “terrorismo de gênero”, Linn afirma:
Será que não fomos por tempo demais inofensivas? Não está na hora de a gente passar a (…) assustar? E também a se assustar, se pôr em risco? Por isso me coloco nessa posição: eu quero duvidar da imagem consolidada há tanto tempo no espelho. Eu quebro esse espelho para que possa me reinventar. É preciso ter muita coragem para sair como eu saio na rua, porque as pessoas não matam só com faca ou com balas. O discurso também mata. Os olhares pelas ruas também nos matam e nos oprimem, e é preciso que todos os dias eu mesma me encoraje para poder ser. (Trecho retirado de entrevista concedida ao Portal G1 em 12 de setembro de 2016)
Em 14 de abril de 2017, Linn da Quebrada divulgou em seu canal oficial no Youtube, o vídeo “blasFêmea | Mulher”, um curta metragem a partir de sua composição “Mulher”. Numa análise breve, o vídeo retrata uma personagem travesti – interpretada pela própria Linn da Quebrada – que ao ser agredida por dois homens é socorrida por diversas mulheres (cisgênero e transgênero).
Segundo PRECIADO (2011), “o conceito de gênero é, antes de tudo, uma noção sexopolítica” (p. 13) e vem sendo utilizado como instrumento teórico, a partir de 1980, para conceitualizar a construção social e a fabricação histórica e cultural da diferença sexual, pontos relevantes no debate entre feministas “construtivistas” e feministas “essencialistas” acerca da feminilidade enquanto essência natural. Para a autora, o corpo não é somente um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes, potência política que torna possível a incorporação dos gêneros (PRECIADO, 2011). Em sua música “Mulher”, Linn da Quebrada também aponta o corpo como potência política, enxerga-o “como uma ocupação”, apontando para um processo que a mesma reconhece em si, o corpo, “está sempre em desconstrução”, é um processo inacabado que a mesma não deseja finalizar, trata-se de “uma estética que não é estática, é uma estética que se move, que é trânsito, que é trans”.
Para PRECIADO (2011), a sexopolítica dos corpos trata-se não somente de um espaço de poder, mas “sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros” (p. 14), enquadrando esse corpo queer como uma “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma vez que a heterossexualidade seria não somente uma prática sexual, mas um regime político que faz parte da administração e controle dos corpos. Linn, aponta em “Mulher”, a fuga a essa território da heterossexualidade, o eu lírico de sua canção “não quer pau, quer paz”. Segundo PRECIADO (2011), o corpo hétero é o resultado de uma divisão da carne, e cada órgão é definido por sua função, o que ocasiona uma sexualidade territorializada da boca, da vagina, do ânus. Desse modo, o pensamento da norma hétero “assegura o lugar estrutural entre a produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e reprodutores” (p. 14). Linn subverte essa territorialização, a personagem de “Mulher”, “ tem cara de mulher, tem corpo de mulher, tem jeito, tem bunda, tem peito e o pau de mulher”, desse modo, o corpo da norma hétero que define mulheres como portadoras de orgão sexual vagina, é transmutado, e no lugar dele, há o corpo da travesti, que é “amapô³ de carne e osso”.
Quer seja em sua canção “Mulher”, ou em tantas outras de sua carreira – tais como “Enviadecer” e “Bicha Preta” – a proposta de Linn da Quebrada é transgredir a norma hétero, demonstrando que não há apenas o padrão binário, o que, para encerrar essa breve discussão, pode ser associado ao que PRECIADO (2011) aponta sobre a política da multidão queer:
não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos (…) contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientes ciborgues… O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas. (p. 16)
Notas:
¹ De testemunha de Jeová a voz do funk LGBT, MC Linn da Quebrada se diz ‘terrorista de gênero’. Portal G1. Música. Disponível em:<http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/09/de-testemunha-de-jeova-voz-do-funk-lgbt-mc-linn-da-quebrada-se-diz-terrorista-de-genero.html> Acesso em: 13 de setembro de 2017.
² “Linn da Quebrada – Eu não quero me finalizar”. Publicado por Melissa Channel em 10 de outubro de 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-50hUUG1Ppo> Acesso em: 13 de setembro de 2017.
³ Gíria LGBT que significa “mulher”.
Referências Bibliográficas
PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11, jan. 2011. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2011000100002/18390>. Acesso em: 13 set. 2017.
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