Muito se tem falado sobre a chamada “ideologia de gênero”. Para aqueles que assim classificam a questão, ideologia de gênero parece se referir a um conjunto de ideias, crenças e normas que promoveriam o incentivo às práticas e existências consideradas patológicas, desviantes ou “pecados”. Ideologia de gênero, portanto, é uma ameaça ao tradicionalismo.
O que não se tem discutido é: o que é, afinal, ideológico ou não? O que chamam de ideologia de gênero é ideologia? E o contrário, o nada, o vazio, o “normal”, não é também ideologia? O tradicionalismo se propõe como não ideológico, e este é um de seus maiores artifícios para que se mantenha como hegemônico. Pois àquilo que é estabelecido, por vezes não contestado, naturalizado, é mais difícil enxergar como construção social.
Neste cenário, de extrema preocupação com a educação sem “ideologia de gênero”, com o crescimento do movimento “Escola sem partido”, que ganhou projeção nacional e cada vez mais força frente aos legisladores, o gênero toma o foco da discussão. Para tal movimento, escola não é lugar de ideologia. Segundo eles, os professores seriam doutrinadores, que defenderiam as ideias de esquerda e a discussão sobre gênero, sexualidade e identidade. Não caberia à escola tal papel, pois isto seria como que um incentivo, segundo sua lógica, para que as crianças se tornassem homossexuais e de esquerda, desrespeitando os valores da família tradicional.
Mas a tradição não é, como já proposto, ela mesma, ideologia? Uma ideologia que aparentemente venceu uma disputa por poder e se tornou hegemônica? Não falar sobre gênero beneficia a quem? Beneficia a norma; beneficia os que são dotados de poder e oprime aqueles que estão às margens deste sistema.
Com a recente tramitação da PEC 181, que modifica a legislação acerca do aborto, e passa a criminalizar tal prática inclusive em caso de estupro, a questão de gênero novamente. Tal bandeira vem sendo defendida pelas bancadas religiosas e tradicionalistas, e apoiada pelos setores mais conservadores da sociedade, inclusive as religiões.
Apesar da força do conservadorismo, surpreendeu, essa semana, um cartaz de protesto contra a Proposta de Emenda à Constituição 181 de 2017, amplamente divulgado em páginas feministas no Facebook. Este cartaz, conforme imagem abaixo, mostra a pauta do movimento “Católicas pelo direito de decidir”, grupo atuante em 12 países do mundo, ativo no Brasil desde 1993. As católicas pautam, no cartaz, sua reivindicação pela legalização do aborto e pelo direito de escolha das mulheres baseando-se no livro sagrado de sua própria religião, em que Maria é consultada antes de ser mãe de Jesus [Imagem do cartaz em questão encontra-se ao fundo.
Dados apresentados pelo jornal Estadão, na coluna Saúde, ainda em 2010, acerca de pesquisa realizada pela Universidade de Brasília, demonstram o perfil das mulheres que abortam no Brasil. Uma em cada sete entrevistadas, entre 18 e 39 anos, já teria abortado; 64% destas mulheres são casadas, 80% tem religião e 81% são mães. 51% declarariam, segundo informações do portal da Canção Nova – grupo que reúne editora, rádio, entre outros meios de comunicação da igreja católica – a religião católica.
As católicas parecem mostrar uma saída entre religião, ideologia e liberdade de escolha das mulheres. Pautando suas demandas feministas e se colocando enquanto religiosas e feministas ao mesmo tempo, parecem como que revelar que o estabelecido não é normal, que é norma; que tal hegemonia não é natural, e sim fruto de uma disputa pelo poder. Resta à militância e à academia conseguirem, alcançar um discurso palatável, de um lado, e a capacidade de mostrar que a tradição também é ideologia, mas ideologia que mata mulheres.
Aqui, a crítica ao que se chama de ideologia de gênero passa a incidir sobre o direito das mulheres sobre seu corpo. Reitera o que, do outro lado, as feministas apontam como ideológico, mas do lado da tradição: a cultura do estupro. Reitera-se o papel passivo das mulheres, como reprodutoras, e se abstrai a violência vivida por estas. A importância do feminismo, neste contexto, é nos lembrar de que este sistema que permite a violência sexual contra as mulheres – baseado na objetificação dos corpos femininos e numa crença de superioridade masculina – é, também ele, uma forma de ver o mundo, um viés, dotado de interesses. Nada é normal ou natural na sociedade.
Precisamos falar sobre gênero. Precisamos falar na escola, na igreja, na comunidade, na política. Precisamos falar para as crianças, para que entendam desde cedo que a ideia de que homens têm direito sobre os corpos das mulheres é isso, uma ideia, uma crença, um valor, uma ideologia. Portanto não é natural, não é normal. A escola é fundamental neste processo, mas tal só ocorre quando há liberdade para que se mostre o outro lado, se desvende as estruturas de poder, se problematize as relações construídas – papel, por excelência, dos Cientistas Sociais.
Por: Aline Oliveira
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