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A migração e seus potenciais ritos de instituição

Por Valentina Françóia  e Fernando Lajus


O deslocamento espacial como ato de investidura simbólica (pensemos na ideia de Rito de Instituição, de Pierre Bourdieu, por exemplo), pode ser traçado até tempos muito antigos. A imigração em suas diversas formas (refúgio, a trabalho, estudantil, etc) parece ser um destes momentos de criação de sujeitos detentores de certa qualidade, ainda mais quando consideramos o tipo de distinção que operam naquelas sociedades da qual migraram. Para Bourdieu:

Os ritos de instituição, como atos de investidura simbólica, destinados a justificar o ser consagrado a ser o que é, a existir tal como existe, acabam por fazer literalmente aquele ao qual se aplicam, arrancando-o do exercício ilegal, da ficção delirante do impostor (cujo caso-limite é o louco que se julga Napoleão) ou da imposição arbitrária do usurpador. Tal sucede ao declararem publicamente que ele é mesmo quem pretende ser legitimado para ser o que pretende, qualificado para assumir a função, ficção ou impostura a qual, sendo proclamada aos olhos de todos como merecedora de ser universalmente reconhecida, torna-se uma “impostura legítima”, segundo a fórmula de Austin, isto é, desconhecida, denegada como tal por todos, a começar pelo próprio impostor.  (BOURDIEU, 2001, pp. 296-7)

Nos últimos anos tem havido, como bem divulgado pela mídia, um fluxo migratório de maior impacto. Se o deslocamento espacial foi sempre uma questão considerada na trajetória de diversos sujeitos nos mais diferentes espaços, ela parece ser agora, talvez mesmo pela direção destes fluxos, uma questão de maior urgência. Na Europa, por exemplo, se discutem novas leis migratórias, ou para onde serão destinados as multidões cada vez mais numerosas de refugiados que, pelo mar ou pela terra, entram nas fronteiras dos países do “primeiro mundo”.

Mas, tais questões postas pela migração não afetam somente os países europeus. O Brasil nos últimos anos também tem visto suas fronteiras serem atravessadas por sujeitos de diversas nacionalidades. O caso mais óbvio sendo o dos haitianos. Em 2011 o número de haitianos no país era de 815. Em 2014 esse número já somava 30.484. Para o caso haitiano, o número de solicitantes de refúgio humanitário até 2016 chega a um total de 48.371. O segundo grupo com maior número de refugiado reconhecidos no Brasil são os sírios, com um total de 2.298[1]. [2]

O que nos parece interessante no presente texto é notar que para o caso dos sujeitos em processo migratório, e em especial para aqueles que estão em refúgio, é preciso se pensar na migração enquanto processo com dois momentos, tal como demonstra Sayad (1998). Em seu estudo clássico sobre os motivos que levaram a uma grande migração argelina em direção à França, Sayad denuncia uma perspectiva que leva em conta somente os elementos de imigração para a explicação do fenômeno migratório como um todo. Por esta ótica, critica o autor, a migração é vista através de uma via de mão única. Nesta perspectiva de mão única leva-se somente em consideração os impactos – na maioria das vezes negativados – que os imigrantes causam aonde chegam. Os motivos que levaram a pessoa a se tornar, em primeiro lugar, um emigrante, são invisibilizados. Faz-se necessário, segundo o autor, remontar “o itinerário do imigrante (emigrante de lá…) e do emigrante (imigrante aqui…)”.

Em seu livro “A imigração ou os paradoxos da alteridade”, o autor está preocupado em demonstrar como para o caso da migração argelina para a França estes dois momentos deveriam ser levados em conta, caso se queira compreender os tipos de impacto que migração coloca. Através da ideia de “Rito de Instituição” podemos conceber os impactos que concernem a posição daquele que migra. Na aldeia, o sujeito se torna alguém esclarecido e cosmopolita; aquele que chegou a França, a terra da bonança. Na França, contrariamente, o migrante se torna mais um dos muitos imigrantes que se acomodam em cômodos apertados e úmidos, destinados aos trabalhos com pouco prestígio e com baixo retorno financeiro.

A consequência imediata desta disparidade entre expectativa e realidade faz com que, utilizando os termos da aldeia na qual Sayad fez seu trabalho de pesquisa, a França se torne a elghorba daqueles que para lá migram[3]. A França passa a ser o lugar do exílio, da escuridão, para onde, por conta do discurso dissimulado por aqueles que lá estão, por esta “impostura legítima” – nos termos de Bourdieu – todos aspiram a ir.

Acreditamos que é preciso considerar estes dois momentos (imigração e emigração) caso se queria disponibilizar as condições necessárias para o bem estar daqueles que, por diversos motivos, nenhum deles aprazível ou conhecido pela maioria dos brasileiros, se tornaram refugiados. Aqui talvez seja mais rico se utilizar dos discursos batidos e até certo ponto clichês, pois o que está em jogo é, antes da soberania nacional ou da segurança interna, a manutenção mesmo de qualquer qualidade humana, da possibilidade de criação de empatia ou reconhecimento. Do contrário, em tempos onde a lógica da exclusão ao outro, da ascensão da impostura fascista e do ódio ao diferente parecem imperar e se reproduzir, qualquer lugar pode se tornar a elghorba.

[1] Existe aqui uma diferença entre o refúgio humanitário destinado a haitianos e o refúgio destinado a sírios e outras nacionalidades, regido pela lei internacional de refúgio proposta na convenção de Genebra de 1951. Já o visto humanitário disponibilizado pela Polícia Federal é regido pela resolução normativa nº 97, de 2012.

[2] Dados disponibilizados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE).

[3] Sayad. 1998. P.288. “ Elghorba: o exílio; de ghorb: o poente –  o exílio sempre vai para o poente e ele mesmo é um “poente” (trevas, escuridão, declínio, morte etc) ”

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Trad. Sergio Miceli. Rio de Janeiro. Editora Bertrand, 2001.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. 1998. Trad. Cristina Murachco. São Paulo. EDUSP.

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