Por Yasmin Vitória
Brasil anos setenta, entre gritos de gol pelo tricampeonato do México e uivos de dor de presos políticos sob tortura, a vida é um terror. Quem tem o mínimo de senso de justiça social, vai à luta com as armas que tiver à mão. […] Charles um dia me passa um livrinho. Oswald de Andrade, o antropófago-mor. Fiquei três dias boquiaberto. Enfim, o poema enxuto, o poema engraçado, o cinepoema. E os manifestos! Só a antropofagia nos une! O carnaval é acontecimento religioso da raça! Alegria é a prova dos nove no matriarcado de Pindorama! Queremos a revolução caraíba! […] Presidente da UBES, pula num poste, brada meia dúzia de palavras de ordem, incendeia a galera e vaza! Só a luta armada derruba a ditadura! […] Todo poeta é um traficante de armas! (Chacal, 2015, p 352-353).
No mês de dezembro de 2016 o poeta marginal carioca Ricardo Chacal (1951) visitou Curitiba e eu tive a oportunidade de conhece-lo e ter conversas e registros sobre literatura e passado. Esse encontro deixou muito clara a relação entre o movimento de poesia marginal1 e sua relação com os acontecimentos históricos, em especial a ditadura.
Nos anos setenta, a poesia rompe o compromisso com a realidade – por ser uma realidade repressiva – e inicia uma realidade marginal, pós-moderna sem intelectualismos. Após a promulgação do AI-5 em 1968, a poesia desenvolvida refletia o fim do sonho: poemas espontâneos, aparência mal-acabada, irônicos e coloquiais, zombando a cultura e a literatura formal. Esses poetas tinham uma cara: eram em sua maioria jovens, classe média, escrevendo sobre a banalidade cotidiana, sem grandes paixões ou ídolos, mas contra o regime; escolhem a marginalidade e são acolhidos por ela. Sem acesso a uma editora tanto pelo custo quanto pela censura, seu maior propulsor foi o mimeografo². Apesar desse rosto mais ou menos delineado, cada uma das personalidades marginais tem uma especificidade.
É proibido pisar na grama³. O jeito é deitar e rolar(Chacal, 2015, p.229)
Chacal, por sua vez, não é e nem foi nenhum militante ou intelectual. Foi preso pelo regime em 1972, mas não torturado, e foi liberado sem nem um dia completo. Foi morar em Londres logo em seguida, financiado por seus pais, o que deu o impulso para o início da sua tão característica poesia falada. Mas isso foi um ano depois, enquanto já divulgava seu primeiro livro, Muito Prazer, Ricardo, em mimeografo, impulsionado pela leitura do manifesto de Oswald, com a tiragem de cem exemplares. “Precário como a vida da gente”, como diz. A partir disso, fez o que faz um poeta marginal com seus livros de mimeógrafos: enfia na mochila e sai distribuindo, na faculdade, na rua, no bar, e principalmente, no píer, mais precisamente o “Utopíer”. O píer era a praia da contracultura no Rio, com frequentadores “cabeludos e drogados”, “sentados nas dunas do barato”. E foi lá que Chacal fez a coisa andar; o livro caiu nas mãos de Waly Salomão, outro poeta marginal que declamava seus versos, que mostrou pra Torquatto Neto, jornalista que mapeava o movimento underground, que o convidou para participar da Navilouca, a revista que reuniu todos esses poetas.
Cantarolando Purple Haze, do Hendrix […] o Brasil era o fim do mundo. A delação era premiada. Todos eram suspeitos. Paranoia máxima. A repressão varrendo as ruas. Agora em cima dos cabeludos que fumavam demais, que curtiam demais. […] Tudo purple. O ácido bateu tudo de novo. Tudo purple. (Chacal, 2015, p.359)
Já em Londres, Chacal teve contato com a contracultura: se a música já exercia força em seu trabalho, ela virou parte essencial para descrever sua poesia. Porém, seu momento mais marcante foi assistir Allen Ginsberg, poeta da geração beat americana, falar seu poema Uivo. As atitudes, as roupas, a risada, o modo de pronunciar as palavras: tudo isso se contrastava com as referências de poesia recitada. Um novo paradigma de poesia, poesia falada; não é declamada, não é parnasiana, não é formal, mas não é totalmente coloquial. É uma performance; mas não é teatro. Tem corpo, figurino, postura, música, foge da introversão da palavra sem vida. É poesia musicalizada, falada, performática, é a percepção de uma nova possibilidade. Chacal maravilhado volta ao Brasil, com o novo livro, America[4], em mente. No Brasil, as coisas tinham andado. A geração do mimeografo se mostra uma grande resistência coletiva, que se traduz na forma de divulgação dos poemas, trocados, compartilhados, assim como o cotidiano dos poetas com o leitor/ouvinte. Os poetas como andarilhos viajantes espalhavam a cultura marginal pelo país, e Chacal fez parte disso quando adentrou a Nuvem Cigana, um coletivo desses artistas que unificou e deu consistência ao movimento por meio da produção independente de eventos performáticos de poesia chamados Artimanhas, onde Chacal pela primeira vez, em 1976, falou um poema.
escurinho da livraria só a rapaziada. A batucada tomava minha cabeça, já tomada pelo Alert Limão, poderosa mistura inflamável. A gargalhada de Ginsberg se juntava ao coquetel. Falei: é agora. Meio possuído, sem nada programado, invadi.Veio uns omi di saia pretaCheiu di caixinha e pó brancoQui eles disserum qui si chamava açucriAí eles falarum e nos fechamu a caraDepois eles arrepitirum e nós fechamu o corpoAí eles insistiram e nós comemu eles.[5] (Chacal, 2015, p.364)
Mesmo depois do AI-5, os anos mais ferrenhos de censura na ditadura, era possível encontrar uma brecha ou outra. Os censores da ditadura certamente não eram tão espertos quanto os artistas que queriam divulgar seu trabalho, e ter uma voz dentro da sociedade, fazendo críticas nas entrelinhas. Quem tinha mais dificuldade eram os artistas mais conhecidos; os censores já prestavam mais atenção, sabiam que poderiam ter mais impacto na população, e como prevenção podiam exilar o artista. Mas como em toda cena artística, existe uma cultura underground – que parecia se reunir, literalmente, abaixo do chão. Era o caso da poesia, no Rio e no resto do Brasil. Poesia no Brasil em senso comum ainda tinha ar parnasiano, declamações, terno e gravata, voz empostada, quase uma missa. Que a poesia podia ser subversiva a ditadura não chegou compreender, sendo a poesia marginal o primeiro movimento brasileiro a aderir cultura pop e cultura de massa a um meio artístico acostumado com erudição. Isso favoreceu o movimento da Nuvem Cigana e todos os poetas marginais, até porque eles não falavam diretamente de política – havia uma crítica, sim, mas essa crítica não era nem um pouco obvia, vinha no jeito de escrever no jeito de se portar, em se colocar marginal.
Reclame[6]. Se o mundo não vai bem ao seus olhosUse lentes……………………………………..Ou transforme o mundo.Ótica olho vivoAgradece a preferência(Chacal, 2015, p. 249)
No ápice do movimento, é criado o Circo Voador, já no fim da ditadura, mas sem escapar de ser reprimido por ela.
Talento e formosura precisando de um espaço para decolar […] O Circo Voador abriu sua lona em 15 de janeiro de 1982. […] Romances nasciam e morriam como em um passo de mágica. No circo, o sonho tinha acordado. Era possível trabalhar e ter prazer ao mesmo tempo. A utopia era possível. A utopia era viável, viável, viável… […] Eles chegaram e colocaram o circo no chão. Era o dia 31 de março de 1982, dezoito anos do golpe militar. E nós, ali, incapazes e imponentes para conter a fúria dos homens da Lei e da Ordem. O rapa baixou e, a marretada, colocou o circo no chão. Eu percebi ali que a indústria cultural tinha tomado conta. E o artista, […] passa a ser um provedor de conteúdos para a atrofia do cérebro. A Utopia estava dominada. (Chacal, 2015, p. 368-370)
Chacal passa o fim dos anos oitenta parado. A poesia marginal já não faz mais sentido, agora que os livros que foram mimeografados e os novos livros são publicados e republicados por editoras sem grandes problemas com censura, distribuídos de maneira comercial, o movimento perde forças. Seu sentido enquanto produção literária está estritamente ligada ao seu contexto histórico ditatorial. O Brasil passa pela abertura política, uma confusão social. Diretas já são um fracasso, Tancredo morre, Sarney assume. Nesse marasmo, de não saber o dia de amanhã, de uma juventude crescendo em uma incongruência política, nos anos noventa Chacal se junta com Guilherme Zarvos e criam o CEP 20.000: Centro de experimentação poética. Lugar para quem tem o que falar, mas não tem onde falar. O primeiro palco de muitos artistas jovens no Rio. O CEP 20.000 já existe a a mais de 25 anos, abrindo espaço para as novas gerações, para sim, falar poesia. A poesia não reconhecida pela academia, pois visualiza como um bando de jovens sem referencial literário teórico, que fala um monte de besteira com português errado. Que diz que poesia não se fala, poesia se escreve. Aqui, a poesia não é só algo para se ler no papel, mas também para ver e ouvir, para ser presenciada através de um corpo presente.
O CEP é o lugar da experimentação numa cultura que cada vez mais se guia pelo manual da boa conduta do mercado. No CEP não. Ali se delira. […] Se isso não é poesia, foda-se a poesia! O que importa é que isso é. Eu sou nós somos.(Chacal, 2015, p.377)
A poesia e a palavra foram dessacralizadas novamente após o modernismo. De acordo com Chacal o movimento marginal queria e conseguiu estabelecer diálogo com a obra de outros artistas, principalmente com a música. Ele, que diz que aprendeu poesia ouvindo Bob Dylan, acredita que estar no Rio foi importante para desenvolver essa poesia que precisava do corpo, pois há menos vergonha, os corpos estão mais livres, existe o carnaval, o samba, a praia. Tudo em conflito e harmonia com a parte urbana. Chacal é tão singular porque percebeu então a diferença entre escrever um poema para ser lido ou escrever um poema para ser falado; o modernismo, mesmo tendo ligação com a oralidade (afinal, “escrever como somos, como falamos”, “a contribuição milionária de todos os erros”) não escreveu os poemas para serem falados, e sim lidos. O poema falado precisa ter ritmo, musicalidade.
Sua visão de Brasil pode até ter traços, de antropofagia, da semana moderna de 1922, mas ele usa dela para ler o presente. Vem de uma poesia que está preocupada em retratar um dia a dia, uma vivencia cotidiana, algo que a ditadura não tinha interesse, pois não existia uma tentativa de tomada de poder, e sim um desinteresse pelas relações de poder políticas, uma desconfiança dos sistemas de poder, tendo em mente a negatividade do regime ditatorial. Não se trata de uma alienação, e essa é a grande questão de toda geração do mimeografo. Se trata de uma exclusão da queda de braço pelo poder, por um certo esgotamento do marxismo como modelo explicativo do mundo, onde nem o projeto da direita militar nem o projeto da esquerda marxista eram satisfatórios; os poetas marginais viviam em sua maioria uma espécie de anarquismo, ou minimamente, uma percepção de que podem ser dadas diferentes interpretações de uma realidade múltipla. Não há uma negação ou desconhecimento da realidade, mas uma escolha de se assumir marginal (que acaba se diluindo no tempo quando há a possibilidade de publicar por uma editora e se consagrar poeta, artista).
Como era bom[7] O tempo em que marx explicava o mundoTudo era luta de classesComo era simplesO tempo em que freud explicavaTudo era clarinho limpinho explicadinhoTudo era muito mais assépticoDo que era quando eu nasciHoje rodado sambado piradoDescobri que é precisoAprender a nascer todo dia(Chacal, 2015, p.82)
Bibliografia
Relatos obtidos presencialmente.
CHACAL, Ricardo. “Tudo (e mais um pouco) – poesia reunida (1971-2016) ”. São Paulo: Editora 34, 2016.
ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
Assaltaram a Gramática. Direção por Ana Maria Magalhães. Brasil, 1984. Encontrado em https://www.youtube.com/watch?v=AbFNEnxzGEY
1 O termo marginal não era um termo que os poetas se designavam, mas um termo cunhado pela academia para denominar o movimento e todo seu universo e modo de se comunicar.
2 O mimeografo é uma máquina usada para xerocar apostilas, provas, documentos e panfletos, que facilitava uma brecha no sistema editorial e de censura pela possibilidade de impressão de panfletos de movimentos e encontros que pudessem ser considerados subversivos. Assim foram impressos os primeiros livros do movimento marginal.
3 Originalmente em Boca Roxa (1979)
4 Data de 1975.
5 Originalmente em Muito Prazer, Ricardo (1971)
6 Originalmente em Olhos vermelhos (1979)
7 Originalmente em Belvedere (2007)
Comments