Por Raphaela Blotz
O processo de urbanização, a quantidade de parques, museus, bibliotecas, as particularidades do transporte público e outras características da cidade deram a Curitiba a reputação de “Europa brasileira”, “cidade modelo” e outras expressões que enaltecem a capital paranaense. Isto posto, esse texto pretende expor, de maneira breve, uma discussão a respeito do City Marketing enquanto uma política institucional utilizada para propagar e ampliar a imagem de “cidade de primeiro mundo” construída a respeito de Curitiba.
Fernanda E. Sánchez García no seu trabalho City Marketing: a nova face da gestão no final do século, realiza uma reflexão acerca dos processos de reorganização e refuncionalização do espaço urbano de Curitiba que marcaram os anos 90. Estes processos eram orientados para uma nova inscrição da cidade no território nacional e internacional. Com um recorte específico na política institucional do city marketing, a autora aborda conceitos como “mitos modernos” e “imagem-síntese” para caracterizar a simbologia do discurso e dos meios de comunicação e informação utilizados para propagar e ampliar a imagem de cidade modelo e qualidade de vida construída a respeito de Curitiba.
Essa estratégia do discurso e dos meios de comunicação foram utilizados como cimento social, condensando a boa aparência das políticas de city marketing sobre os cidadãos dando legitimidade e apoio social às mesmas. Segundo Sánchez García : “a absorção acrítica dos novos “produtos” urbanísticos e os rápidos processos de adesão social a ideias, valores e mitos associados à cidade moderna (…) são indicadores da cristalização da imagem urbana construída.”.
Dessa forma, “a obtenção e manutenção deste padrão dominante expressa, por sua vez, a agilização dos elos entre os meios técnicos de comunicação, esfera cultural e aparelhos de poder.”. Os projetos urbanísticos implantados em Curitiba nos anos 90 promovidos pelo city marketing desempenharam a função de reorganização do espaço metropolitano para atender às demandas de qualidade de vida urbana e assim, poder competir com outras metrópoles na busca de investimentos locais e estrangeiros para a fixação de um mercado forte e organizado.
Vale lembrar que a política do city marketing é marcada pela associação entre o poder público e os interesses do poder privado. De acordo com Sánchez (1999) o city marketing constitui-se, na orientação da política urbana à criação ou ao atendimento das necessidades do consumidor, seja este empresário, turista ou o próprio cidadão. Sendo assim, a produção de imagens/mito tem um papel cada vez mais relevante na formulação de novas estratégias econômicas para a cidade. Orientadas, principalmente, para a internacionalização desta, essas estratégias também são voltadas para a obtenção de efeitos internos, particularmente no que se refere à construção de uma ampla adesão social a um determinado modelo de gestão e administração da cidade.
Com o apoio de empresários, o projeto de modernização de Curitiba internaliza e antecipa tendências dominantes de reorganização do espaço e da sociedade já no início dos anos 90. A intervenção incisiva das redes técnicas de comunicação em bagagens culturais da população urbana indica um vínculo ativo entre cultura e economia, como demonstram o marketing e a promoção cultural de cidades e lugares. Dessa forma, poder político e poder econômico se aliam para formular novos projetos para o espaço urbano que beneficiam os interesses privados, mas são “vendidos” pela mídia como projetos realizados para o bem estar da população.
Essa configuração é chamada por Barthes (1982) de mitos modernos, estes são produtos de uma linguagem que reelabora e dá novo significado ao senso comum. Entretanto, esta reelaboração “seleciona parcelas da realidade urbana e recodifica a experiência coletiva mediante estereótipos e simplificações pragmáticas.” (Sánchez, 1997).
Em um contexto mundial essas políticas de reorganização urbana do fim do século XX surgem em meio ao dinamismo das mudanças econômicas mundiais, aos conflitos geopolíticos, as incessantes inovações tecnológicas e as mudanças nas atitudes socioculturais. Com efeito, estes fenômenos exigem dos administradores e gestores urbanos uma grande capacidade de antecipação ou de reação perante a atuação de seus “competidores” mais diretos (Sánchez, 1999).
Diante disso, surge o fenômeno do “empreendedorismo urbano” caracterizado pelo papel empresarial do poder político local, assim como a crescente parceria com o setor privado, almejando investimentos e o desenvolvimento econômico da cidade. Segundo Sánchez (1999), isto representa um notável giro na filosofia do planejamento e da gestão urbana, que implica uma profunda reestruturação administrativa com a adoção de métodos empresariais de trabalho, mais orientados para a demanda do mercado do que para a própria população.
Deste modo, esse novo modelo de gestão urbana (público-privada) tem provocado profundas e questionáveis mudanças na atuação dos governos municipais com relação às suas prioridades na alocação de recursos e compromissos e na implementação de políticas, com tendências cada vez maiores a uma mercantilização da vida urbana.
No caso de Curitiba, a figura do prefeito Jaime Lerner representa esse tipo de ideologia. No entanto, o prefeito é associado positivamente pela maioria dos cidadãos pelas transformações realizadas na cidade:
Hoje cada rua de Curitiba tem alguma marca da criatividade do Jaime e de sua capacidade de reunir as pessoas em torno de seus projetos. Em Curitiba, muitos dizem que tudo aquilo que o Jaime toca não “vira ouro”, “vira” qualidade de vida. (IstoÉ, 8.4.1992).
Em relação à fixação das imagens-síntese na opinião popular, esta é obtida pelo seu uso recorrente pela mídia e pelo discurso da figura do líder (prefeito). Com isso, a população é direcionada a determinadas formas de apropriação dos espaços e à reprodução de esperados traços culturais do “espírito do lugar”, codificando assim comportamentos específicos para cada cidade. Como afirma Sánchez (1997):
Quanto mais as sínteses discursivas cristalizam-se nos mitos modernos maior se torna o risco de que seu uso opere com classificações excludentes ou controladoras de comportamentos sociais, acirrando uma valorização desigual de segmentos da vida coletiva.
A construção da imagem de cidade modelo no caso de Curitiba se deu a partir dos anos 70 quando foi implantado o Plano Diretor da cidade que produziu mudanças profundas no tecido urbano e cujos eixos foram a determinação de um novo desenho de vias estruturais com um uso do solo específico e um modelo de transporte coletivo de ônibus expressos (uma espécie de metrô de superfície) (Sánchez, 1997).
Já nos anos 90, outro tipo de imagem-síntese passou a ser elaborado em Curitiba, utilizando novos projetos urbanísticos como a construção de parques étnicos, novos centros culturais e de lazer como o “Memorial da Cidade” ou a “Ópera de Arame”, ruas da cidadania (serviços para a população), bibliotecas populares chamadas “Faróis do Saber”, o Jardim Botânico e a Universidade do Meio Ambiente, entre outras obras emblemáticas do período.
Tais obras que marcaram a modernização de Curitiba e ao mesmo tempo classificaram-na como “Cidade de Primeiro Mundo” contribuíram para o redirecionamento das redes modernas de consumo de bens e serviços metropolitanos. A capital paranaense passou a ser escolhida como centro de experimentação de novos equipamentos e fluxos, como também centro difusor de novos valores associados aos desejados padrões contemporâneos de vida urbana.
De acordo com Sáchez (1997), “o poder de atração da cidade no plano interno do país, encontra-se claramente identificado no marketing recente que potencializa a imagem-mito criada”. Segundo a autora, essa imagem construída pela relação entre cultura, política e economia aciona a temática da “qualidade de vida” com a “superioridade de seus serviços urbanos” e seu “alto padrão de opções culturais e de lazer”. Em consequência disso, ocorrem as migrações de famílias de classes dominantes para a cidade modelo brasileira.
Milton Santos discorre sobre isso em seu texto “O meio técnico-científico e a urbanização no Brasil” (1988). Segundo ele: a agilidade com que o discurso dominante incorporou a face contemporânea dos circuitos econômico-espaciais revela, entre outras coisas, a assimilação da possibilidade de redistribuição das classes médias no território nacional.
No novo meio técnico-científico, o sistema de técnicas torna-se um suporte para um novo sistema de relações sociais e espaciais. Os fluxos espaciais passam a ser mais amplos. Na era da globalização surgem novos recortes territoriais com uma crescente liberdade das atividades para se localizarem sem as dificuldades impostas pela distancia física. A escala de medição passa a ser também o tempo.
O processo de modernização de Curitiba teve caráter excludente no sentido de visar a padronização cultural, levando-se em conta a imagem consensual e as articulações identificadas entre discurso e senso comum e, por outro lado, os contextos altamente seletivos de inovação real e de apropriação e acesso aos novos serviços e equipamentos urbanos. “ O city marketing mediante veiculação de sistemas articulados de estilos de vida e imagens, tem uma contraface que se constrói na exclusão e segregação.”
De acordo com Sánchez, “a face perversa da modernização é que enquanto se instauram e agilizam condições extremamente favoráveis para os grupos mais fortes também se instauram as condições para a alienação dos cidadãos.”
O trecho do artigo Políticas Urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes, traz a definição do que seria uma cidade espetáculo traz uma reflexão importante para continuidade da discussão:
A noção de cidade-espetáculo aqui desenvolvida indica a espetacularização da experiência urbana. Verificamos que muitas vezes os cidadãos – consumidores? – têm uma atitude reverenciadora, complacente e, em última instância, passiva, em relação à cidade. O espaço é transformado em cenário onde tudo é objeto de consumo estético e contemplativo. Nesse sentido, é a cidade que está no centro da cena, a cidade tornada sujeito, que em determinadas circunstâncias transforma os próprios cidadãos em meros figurantes, atores secundários de seu roteiro. (Sánchez, 1999, p. 126).
Assim, percebemos que o discurso de “Europa brasileira” não é ingenuo e não surge sozinho, pelo contrário, é um discurso que assiste a interesses de classes específicas, provocando segregação e exclusão.
Bibliografia:
SÁNCHEZ, F. Cidade-espetáculo: política, planejamento e city marketing. Curitiba: Palavra, 1997.
SÁNCHEZ, F. Políticas Urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Rio de Janeiro, n 1, maio de 1999, p. 115-132.
SANTOS, M. O meio técnico-científico e a urbanização no Brasil. In: Espaço e Debates. São Paulo: NERU, n 25, 1988, p. 58-62.
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