Texto de Dagoberto Lima Azevedo
Dos domínios do conhecimento dos kumuã Ye’pamahsã, isto é, da tríade conceitual e cosmológica Kihti ukuse (narrativas e falas importantes), bahsese (benzimentos ou encantamentos) e bahsamori (cantos cerimoniais), abarco principalmente o bahsese. Em seguida, através das narrativas mítico-históricas situo o espaço Di´ta Nuhku, (terra-floresta) lançando um esforço descritivo sobre a forma e o conteúdo desse espaço Di´ta Nuhku: explicito uma classificação dos seres (humanos e não-humanos) extraída dos agenciamentos dos espesíntese de sua dissertação de mestrado em Antropologia, Dagoberto discute conceitos centrais do pensamento Tukano, principalmente referentes à organização e aos cuidados com o espaço terra-floresta, a partir do conjunto dos encantamentos. Ao mesmo tempo, conta sua trajetória como antropólogo tukano cialistas kumuã; procuro demonstrar como a prática dos Bahsese equilibra e sustenta, classifica e ordena seres e coisas no espaço Di’ta Nuhku; e abordo como o pensamento Ye’pamahsã mantém a circulação ordenada e harmônica e o bem-estar entre os seres sobre a plataforma terrestre. Esses conhecimentos encadeiam uma reflexão particular sobre instituições e formas de vida Ye’pamahsã, indissociáveis do princípio da dignidade da pessoa humana.
Trajetória da canoa de transformação escolar e acadêmica
Meus leitores e minhas leitoras de mahsã mami kura (grupos de irmãos maiores), dehkokaha kura (do grupo de irmãos do meio) e yapatiri kura (grupo de irmaõs menores) Ye’pamahsã; e meus leitores e minhas leitoras de utamorimahsã (sogros (as) e cunhados (as) afins):
Quero começar a conversa apresentando minha trajetória da “canoa de transformação” escolar e acadêmica na casa dos Pehkasã (não-indígenas). Sou Ñahuriporũ, de nome Suegu Dagoberto Lima Azevedo, da comunidade Pirarara-Poço, do médio Rio Tiquié. Foi nessa comunidade a minha formação de alfabetização de abc e dos números naturais do pehkasũ (não-indígena) e outros, até a 4º série sob orientação e acompanhamento do filho do meu mẽ (tio) Ñahuripõrũ Luciano Azevedo, Manuel Aguiar Azevedo que era meu nihã (irmão menor). Este foi ex-aluno interno na missão dos paíya (padres) Salesianos em Pari-Cachoeira. Já na minha época escolar, conhecida como escola rural implementada pelo município sob direção das paíya numiã (irmãs Filhas de Maria Auxiliadora). Lembro muito bem, mesmo a escola estando na comunidade e o professor sendo do meu grupo Ñahuriporũ, a supervisão era sob olhar e pensar metódico do não-indígena. Do ensino fundamental (5ª a 8ª) ao ensino médio, fiz nas missões de Pari-Cachoeira (1995-1998) e Iauaretê (1999-2000). Nesses centros Missionários pude conhecer mais outros grupos falalíngude línguas indígenas, pois éramos alunos Ye’pamahsã, Desana e Hup’däh que dominavam muito bem a língua Ye’pamahsã, e menos a língua portuguesa.
Em todo o período escolar fui acompanhado da língua portuguesa, que entendia muito bem mas querer falar essa língua parecia uma angustia; na minha casa com meus pais, meus irmãos e outros de convivência fora da escola mantive o uso da minha língua. Havia em mim um sentimento de bohpayase (vergonha) e puetise (sofrimento) quando chegava a vez da minha apresentação do trabalho escolar frente dos meus colegas de classe. Sofri, mas com esforço pessoal e incentivo dos familiares superei e avancei para outro espaço chamado de universidade, na qual cursei filosofia (2005 a 2008), na Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, finalizando na Faculdade Salesiana Dom Bosco, em Manaus. Nessa “maloca” se encontravam pessoas vindas de vários estados brasileiros com suas origens paternas e histórias diferentes. Eu os considerava e os via como pehkasã (brancos). Ao serem perguntados, alguns conheciam suas origens, sua história; alguns simplesmente diziam desconhecer de onde vieram seus pais e quem eram; outros diziam somos da periferia de tal cidade, de tal estado. Em certa ocasião da minha apresentação da disciplina Ciências Sociais, iniciei a minha fala pelo Rio de Janeiro, Bahia da Guanabara, que os Ye’pamahsã consideram, em seu kihti ukũse (narrativas históricas/míticas), o começo de seu espaço de Di’ta Nuhkuri , indo até Aruãrĩ Utú na bacia do rio Uaupés. Na exposição me dirigi à baia de Guanabara, que no conhecimento Ye’pamahsã é Õ’peko Di’tara (Lago de Leite Materno). Todos os não-indígenas presentes na aula murmuraram entre eles, outros deram risadas, a professora disse desconhecer e que isso foi novidade para ela. Esse acontecimento me levou a pensar que a universidade seria uma instituição onde unicamente as rígidas normas da ciência dominavam. Isto é, que ela existe para reproduzir os conhecimentos “científicos”, sem se abrir para os outros modos de conhecimento. Que ela, por si, não está interessada em abrir portas para os outros conhecimentos. Universidade é uma casa da ciência. Todos os cursos, sejam de graduação ou pós-graduação, que se concentram aí, estão a serviço da ciência considerada o conhecimento universal, englobante, a verdade maior.
Pois então, inquieto com o que ocorreu comigo na graduação em filosofia, ingressei na pós-graduação em antropologia social na Universidade Federal do Amazonas (2014). Antes disso, entre 2009 a 2013 atuei como colaborador da Associação Indígena do Médio Tiquié (ACIMET) e do Instituto Socioambiental (ISA). Atualmente, sou doutorando na UFAM, na mesma área de antropologia que vim abarcando desde 2014, junto com ahkawererã Ye’pamahsã (parentes) e com ˜utamorimahsã mestrandos e doutorandos do Alto Rio Negro. Estamos numa luta incessante de Davi contra Golias. Sempre pautamos que os conhecimentos indígenas sejam vistos e considerados de fato, em seus próprios fundamentos conceituais e lógicas no kihti ukũse e no bahsese. Esse trabalho é estilingue de Davi. Nem por isso deixaremos de lutar, e vamos ao conteúdo do texto para mostrar nossa ciência indígena. Pois estamos no coração do Amazônia.
Qual é a forma do bahsese? Qual é o conteúdo do bahsese?
O título do texto pode ser que tenha colocado inquietações para os meus leitores. O que é, qual é a forma e o conteúdo do conjunto dos bahsese? Forma é tudo que diz respeito aos procedimentos do kumu no ato do bahsese. Como ele executa os bahsese. Se usa algum behsu (veículo) – objeto, pedra, planta, liquido, resina vegetal – ou se não usa nada disso, apenas fecha os olhos e se concentra na comunicação com os waimahsã. E quando digo conteúdo, refiro-me a toda a digressão narrativa da origem e da trama protagonizadas pelos demiurgos sobre certas doenças, e outros que podem ser falados em voz alta no momento de transmissão destes conhecimentos aos seus sucessores no círculo da coca, no acompanhamento dos trabalhos e em outros momentos. Na ausência de seus companheiros, ele apenas se concentra, solitário, e pratica o tuoñase (pensamento e reflexão) por si só.
Ainda surge mais uma inquietação em torno do conceito do bahsese? Onde está sua explicação, explanação para compreender o que diz essa palavra de fato no entendimento, na compreensão do Ye’pamahsã? Pois bem, Bahsese é o conjunto de elementos de comunicação com Waimahsã, lógica e sistematicamente estruturado apesar da circulação oral entre os conhecedores. O bahsese é tanto o repertório de palavras, expressões e discursos que possibilitam a comunicação de um conhecedor especialista (kumu, yai, baya) com os waimahsã, como a capacidade de proteção ou agressão, capacidade ainda de invocar elementos curativos contidos nos diferentes tipos de vegetais, animais, minerais, objetos etc. Com vistas à assepsia dos alimentos. Arte de domínio dos velhos conhecedores, traduzida literalmente pelo termo cristão “benzimento”, o conteúdo cosmológico do bahsese vai muito além, remetendo-nos ao plano de imanência conceitual Ye’pamahsã. Extravasa, portanto, em muito, os limites católicos literários impostos no Alto rio Negro. O bahsese é um repertório de palavras com poderes de destruição e de comunicação extra-humana. Elementos como a água, o tabaco, o breu (resina vegetal), o sal, a pimenta, a urtiga e o urucu podem ser utilizados como veículo dessa comunicação. O bahsese é categorizado em três tipos: waimahsãya turiwetidarese (comunicação e interação com waimahsã), mahsãya turi Bahsesewetidarese (relação e i4nteração entre os humanos) e baase bahse a’kase (assepsia de alimentos).
O primeiro tipo de bahsese, waimahsãya turi wetidarese, nos permite classificar os diferentes espaços ou patamares do cosmos Ye’pamahsã – wamudia (subterrâneo), Di’ta nuhku (terra-floresta), ome pa’ti (aéreo) e ahko pa’ti (aquático) – a partir dos quais identifica-se ambientes menores, onde habitam e atuam os waimahsã. Esse tipo de bahsese nos fornece a chave da taxonomia Ye’pamahsã dos elementos que compõem os espaços e ambientes, a exemplo dos tipos de terra, das unidades de paisagem e vegetação, dos grupos de animais de caça, dos peixes, dos frutos. Essa é uma prática de Bahsese de prevenção, proteção e interação contra os ataques dos wiorã (donos dos lugares) que olham, cuidam e vigiam seus waikurã (animais) e yuku duhka (vegetais) que vivem e habitam no espaço Di’ta Nuhku. Esta interação é fundamental para controlar determinadas doenças/ataques, que são lançados pelos waimahsã (super-humanos) tomando os animais, o ar e vegetais/frutas como behsu (o veículo de ataques): esses ataques
São Waimahsã wêhse (ataques/agresão dos waimahsã). Assim às vezes acontecem acidentes na derrubada da roça, quando árvore em derrubada pode cair em cima da pessoa e ferir gravemente, matar ou deixar doente; ou acontece uma queda da pessoa da fruteira silvestre, na falta de comunicação com o waimahsã; ou o consumo de ucuqui sem baase bahse ehkase pode causar crise epidérmica aguda de coceira.
O segundo grupo, mahsãya turi bahsese wetidarese, é constituído pela natureza das relações entre os humanos em seus espaços de circulação como a casa, a roça, as visitas e os caminhos. São eles: wetidarese (bahsese de proteção), doatise bahsese (benzimento de cura) e de Useró behtise (agressão). Para manter as relações sociais equilibradas através de uma ação de proteção e harmonização das relações entre as pessoas, faz-se bahsese de Wetidarese, que consiste na prevenção e proteção dos ataques de wahparã (os inimigos) ou dos ñarô tuoñase (as má-intenções) de potenciais inimigos. Essa categoria de bahsero está relacionada ao campo de relações e convívio entre humanos. Assim, quando um grupo de Po’orimahsã (grupo visitante/ofertante no po’ose, dabucuri) está a caminho da casa dos anfitriões do po’ose no último pernoite, o kumu faz e aciona bahsero wetidaro, onde desarma, acalma o eventual espírito de hostilidade e potências de conflito; sensibiliza e fortalece o clima ameno, alegre e festivo nos anfitriões lembrando a eles que se trata de encontro entre nikuporã (filhos de uma única origem). Também se faz bahsero wetidaro quando se visita os ahkawererã (parentes consanguíneos) ou os mañekusumuã e peñarã (os sogros e cunhados): para neutralizar o potencial de agressões verbais e físicas; fazer esquecer as más lembranças de ukahsé (rumores, difamações e crítica maledicente) e proporcionar uma recepção calorosa, amigável, festiva e alegre.
O terceiro e último grupo, baase bahse a’kase, diz respeito ao bahsese de cuidado e assepsia dos alimentos de origem animal ou vegetal, provenientes dos mais diferentes lugares (espaços, tipos de terra, de plantas) e atividades – caça, pesca, agricultura, coleta e até mesmo de produtos industrializados. É no conteúdo do discurso desse tipo de bahsese que encontramos uma lógica Ye’pamahsã de agrupamento dos animais de caça, peixes e vegetais comestíveis. Aqui estão presentes os espaços por onde circulam os animais, suas características físicas, comportamentais e habilidades, suas formas de alimentação, seus predadores, parasitas etc. Atualmente os alimentos e comidas industrializados (carnes de frango e boi, enlatados, arroz, feijão, pão, leite e leite em pó, açúcar, café, refrigerantes e bebidas, frutas como maçã, pera, uva, verduras) também passam pela ação do bahsero.
O espaço Di´ta nuku pela lógica do bahsese
O espaço Di’ta Nuku é um conjunto formado por terra e floresta, fauna e flora associadas com os diferentes tipos de terra (tipos de solo) e diferentes tipos de vegetais. De igual modo veremos mais adiante que a distribuição dos Waimahsã do espaço di’ta nuhkuri tambémestá associada aos diferentes tipos de terra e de vegetais. Assim, no Buritizal, o Nee mahsu (Homem Buriti) é o dono/chefe deste espaço.
O espaço Di’ta Nuku (Espaço Terra/Floresta) é constituído por: yuku bukuro (floresta madura/velha); wiakaro (capoeira); tataboa (floresta sobre areia); diakoe (igapó) e tari (chavascais). O yuku bukuro caracteriza-se pela formação Di’ta ñiro (terra-preta), omã di’ta (terra piçarrenta) e dita Waharo (terra arenosa amarelada). Essas terras/solos quando cultivadas produzem fartamente e a colheita é sempre boa. Além desses, temos pahsí di’ta (tabatinga), nukupori di’ta (terra-arenosa-branca) e di’ta soãro (terra-vermelha). O igapó é um espaço importante, com terra argilosa e presença de uma fina camada de areia. Nele se encontra a maior parte das árvores frutíferas que alimentam os peixes nos períodos de chuva, e também se encontram matérias-primas para o fabrico de artefatos de uso cotidiano. Os espaços com terra úmida, em algumas áreas mais encharcadas ou completamente submersas com solo preto argiloso chamam-se tari (chavascais). Esses espaços também são reserva de frutos comestíveis, principalmente palmeiras como o açaí e o buriti. As concentrações dessas palmeiras formam o mihpitá (açaizal) e o ne’tá (buritizal). Outras palmeiras também são importantes aqui, como caranás que servem para cobertura das casas, mas cujos frutos não são consumidos. Esse espaço chama-se muhitá (caranazal). O wuta (arumazal) faz parte do tari, donde se extrai arumã para fabrico de vários artefatos de cestarias, oferecendo ainda vários tipos de cipó para armação da casa. Para calafetar canoa e para uso do bahsese, os Ye’pamahsã procuram os pés de breu que se encontram no espaço chamado ohpetarí. Mas devo destacar, esses espaços (wutá, ohpetá e mihpitá) encontram-se também ao redor da yukubukuro, tataboha, diakoe, wiakaro e tari. Cada um deles ocupado por seres distintos, classificados de acordo com as características gerais e suas propriedades. Todos esses lugares, é importante frisar, são casas de Waimahsã.
A composição dos seres
Os seres habitantes do espaço di’ta nuku são classificados em duas categorias distintas: nuhkuri mahsã (floresta-gentes = gente floresta), seres invisíveis (espíritos com morfologia humana ou humanoide); yuku mahsã (árvores-gentes = gente árvore) seres visíveis (espécies animais e vegetais). Todos eles, no conhecimento dos Ye’pamahsã, são waimahsã.
Os nuhkuri mahsã
Os nuhkuri mahsã são normalmente invisíveis, mas podem aparecer em algumas ocasiões, por exemplo, quando uma pessoa entra na floresta sem os devidos cuidados do bahsero de proteção. Esses bahsese de proteção, no conjunto, são situados em uma categoria abrangente denominada wetidarero, que se compõe simultaneamente e na sequência das ações de wetiro (proteção da pessoa), nisiosé (voltados para abrandar, acalmar a eventual raiva e vontade de revide ou agressão dos waimahsã) e kamotasé ou proteção e “blindagem” por imisari (paris) invisíveis antes das atividades de abertura, derrubada, queima de roças e coleta de plantas e frutos da floresta como caraná e buriti.
Na ausência do procedimento de proteção e prevenção por meio do wetidarero, os nuhkuri mahsã podem, na forma de uma aparição repentina, surgir à visão e ao contato da pessoa humana que adentrou no seu espaço-domínio e causar eheriporã bahtase, um susto, isto é, ruptura, rompimento da vitalidade humana coração/ vida e causar uma série de distúrbios no estado da pessoa, tanto corporal (dores, enfraquecimento corporal), quanto mental (medo, angústia, obsessão da imagem da figura não humana que apareceu à pessoa); os seres raptores wearimahsã, “aqueles que aliciam e raptam”, podem também enganar e raptar uma pessoa fazendo-a desaparecer por um tempo ou de maneira definitiva.
Os nuhkuri mahsã podem assim causar doenças caso não se cumpra com as normas e etiquetas adequadas do Betise antes de entrar nesses espaços-domínios, todos povoados de diferentes tipos de nuhkuri mahsã e cada qual com um dono maior.
Outra categoria de nuhkuri mahsã inclui aqueles seres com morfologia humanoide que podem aparecer em diversas formas: Boraró, personagem-pessoa vestido com um sutiro (roupa) com as seguintes características: os pés alongados e virados para trás, completamente coberto de pelos que, batendo palmas com suas mãos de macaco produz um som igual ao do disparo de uma espingarda de grande calibre que produz uma vibração e um tremor que cerca metafisicamente a pessoa (tornando-a como uma presa dentro de sua armadilha de caça/pesca). Ele sente muita atração pelo cheiro da mulher menstruada que, para ele, tem o cheiro de frutas doces (abacaxi) que se expõem sem o wetidarero na mata; quando ele captura uma pessoa, enganando-a por seu cheiro, ele suga/chupa seu sangue por um orifício sensível no crânio chamando mahsapé (“buraco da pessoa”), feito isso ele infla a pessoa com seu sopro (como um balão), que volta para casa visivelmente atordoada e se deita na rede dizendo – boraró sisikãsî (fui chupada por boraró) e invariavelmente, seu corpo esvazia progressivamente do ar soprado por boraró e a pessoa morre. Boraró é waikurã Wiogu, isto é, chefe/dono/mestre dos animais de caça.
Outro ser é Saropau (batedor do tronco da árvore) ou Saro wãhti: de pequena estatura, cabelos longos e amarelados, é de boa índole mas gosta de assustar as pessoas batendo com um jabuti, seu machado, assustando sobretudo as crianças recém-nascidas (bahsero de susto/choro de criança que está assustada de estar neste mundo, ati pati).
Biru: de estatura pequena, olhos vermelhos, de cor preta (ñigu, ele passa pela beirada dos rios e igarapés, e assusta os pescadores soprando (assobiando) com pequeno instrumento feito de barro (um tipo apito) que produz um som agudo e forte “biiiiiiiiiiiiiiiiiru, biiiiiiiiiiIiiiru, biiiiiiiiiiiiiiiiiru” que alcança o mais profundo dos tímpanos da pessoa, por isso quando se ouve biru, deve-se afastar imediatamente daquele espaço, pois o sopro/assobio de biru atordoa a pessoa podendo até torná-la surda, este mesmo assobio assusta a criança recém-nascida como o saropau.
Oumuãro wãhti (ser que se desloca nos galhos das árvores): de corpo e membros alongados e com uma aparência simiesca (macaco chimpanzé), com muitos pelos que exalam um fétido odor desagradável que causa desmaio, náusea; com um ímpeto predador ele se joga no chão e persegue sua vítima, quebra o pescoço dela e devora imediatamente sua presa; na maioria dos casos o encontro com um umuãro wãhti se resume a uma perseguição que é abandonada. Persegue preferencialmente as mulheres menstruadas e aquelas pessoas que quebraram o behtise e comeram carne fria.
PŨu wãhti (ente rede): são vistos como sombras noturnas, quando a pessoa sozinha sai nos arredores da casa, ele assusta as pessoas, mas não é um ser perigoso.
Ta’puhti wãhti (ente capim): com cabelos e capim, assusta as pessoas.
Ohopuri Wãhti (ente banana): cabelos de folha de banana, assusta.
Pehka wãhti (ente lenha): todo o seu corpo é coberto de feixes de lenha e quando anda produz um som de lenha sendo arrastada.
Botepuri wãhti (ente embaúba): cabelos e pelos de folhas de embaúba, assusta as pessoas à noite.
Waro wãhti (ente cuia): corpo formado de cuia (waro) produzindo o som de cuias se entrechocando (- kurukurukuru).
Estes seres wahtiã tentam sobretudo roubar/capturar/trocar o heriporã (coração) da criança pelo seu próprio heriporã, o que causa a morte da criança, que é levada (seu heriporã) para a casa do wãhti que roubou seu heriporã; eles assustam as crianças recém-nascidas, produzindo uma crise de choro repentina no recém-nascido, que pode ver estes wahtiã e se assustar. O susto e choro dessa criança dá um sinal de alerta aos pais, para que procurem o especialista (kumu, yai, bahsegu e bayá) para um bahse Ahporo, isto é, refazer e arrumar/completar a formulação da proteção do espaço da criança recém-nascida (veículos: cigarro, breu-preto, URUñoa (carajuru aplicado no peito, no umbigo, nas palmas das mãos, nas solas do pé, orifícios auriculares, nas virilhas, na ponta da língua). Alguns wahtiã moram nos galhos, nos pés de árvores de grande porte que têm buracos ou que são de troncos ocos sejam de kahti kUHU (árvore-viva) e no umû susukuhu (madeira-oco).
Os Yukumahsã
Os yukumahsã são os waikurã nuhkuka siarã (animais terrestres) e di’ta kohperi sañara ou di’ta mahsã, gente da terra (paca, tatu etc.), wurã ou wuri mahsa (pássaros), yukukohperi sañara (abelhas, insetos que vivem nos ocos dos paus) e tutipu sañara ou tuhti mahsa (animais das árvores caídas, queixadas, cutias), yuku duhpuripu nirã ou duhpuri mahsã (que são gente que vive nos galhos), ñeripu sañara ou ñeri mahsã. Todos esses seres, enfim, vivem no espaço di’ta nuhku e para poder andar pela floresta é preciso a proteção dos bahsese. Os yuku mahsã podem também ser behsu (veículo) de ataques dos waimahsã e como muitos deles são presas e servem para alimentação humana é necessário a ação de baase bahse ehkase (purificação do alimento) para os consumir/comer sem perigo.
Os devidos cuidados começam antes mesmo da pessoa nascer, eles já devem se iniciar na gestação até ao primeiro banho pós-parto do nipahku sumuã (pais da criança em gestação); o bahsegu ou kumu faz wetidarero evitando e prevenindo de eventuais ataques do yukumahsã e nuhkuri mahsã. A nipahko (mulher gestante) assim que sabe do seu estado vulnerável de gravidez procura apoio e conselho com sua mãe, que por sua vez solicita acompanhamento ao especialista para que este a proteja por meio de bahsero de wetiro bahsero da criança que está se formando no útero, do perigo potencialmente letal de heriporã dohkayusé (troca de heriporã por um waimahsã).
Periodicamente, o bahsegu faz wetidaresé prevenindo possíveis ações inesperadas dos waimahsã, aqueles yukumahsã citados acima tais como: ñasaputisé (acidente de toco, isto é, quando a pessoa pisa e é perfurada por um pedaço de madeira), burusé (queda inesperada da altura de uma árvore), puatuse (tropeço), niãrotarisé (náusea aguda e desmaio durante o trabalho na roça), duhtese (acidente com instrumentos metálicos de corte), tarisé (esmagamento por tombo de árvore ou galhos grandes). Tudo isso acontece quando se desconsidera a importância de wetiro, kamotase e nisiose. É importante situar do mesmo modo outras distinções significativas, como a variação da composição morfológica de acidentes de terra. Os modos de aparência dos espaços configuram, na perspectiva/visão dos especialistas, as bahsaka wi’í ou bahsariwi’í dos waimahsã e de kuyarã waikurã (seus animais de estimação).
Dizem os kumuã que durante as caçadas de queixadas nos espaços situados nos declives topográficos (pé de serra, nuhku buhkuro), o wiogu e condutor da vara de queixadas é o próprio boraró, por isso o caçador deve matar apenas as queixadas seguidoras. O kumu sabendo do habitat e dos hábitos dos diferentes waimahsã, oferece por meio do wetidarero: ekatise patu (ipadu de alegria), ekatise murorõ (tabaco de alegria), ekatise peru (caxiri de alegria) como troca pela caça. Assim, por exemplo, no caso da caçada de queixadas, ele oferece este conjunto de ekatise muropu a boraro, assim este waimahsu se sente bem e, consumindo as ofertas feitas pelo kumu, ele se mantém no seu lugar e não nota a falta dos kuyarã waikurã (seus animais de estimação).
As classificações do espaço di’ta nuhku são utilizadas pelo kumu durante suas ações de bahsero, isto é, são orientadas pelo conjunto dos bahsese. E também orientam as atividades habituais como abertura de roças, construção de casas e escolha de mahkapãro (“abertura de aldeia/comunidade”). Neste espaço di’ta nuhku podem ser distinguidas e classificadas cinco áreas (paisagens). Seguindo a perspectiva de uma pessoa que está adentrando nesse espaço temos: buakearo (plano inicial em leve declive), dehko (nível intermediário em declive mais forte), muhapearo (superfície plana da parte alta do declive).
Em cada formação há uma complexa composição de di’ta (solos/terras): wahari bua nuhku (terra arenosa de floresta), di’ta ñiri bua nuku (terra preta defloresta), di’tawitari bua nuku (terra argilosa de floresta) omã di’ta ñiri bua nuku (“terra-rã de floresta”), omã di’ta nuku soãri bua (“terra-rã vermelha de floresta”), sawari/tari (terras encharcadas – açaizal, buritizal), pahsí (tabatinga) da qual temos: ewu buhtisé (tabatinga branca), soãsé (tabatinga vermelha), ñisé (tabatinga preta).
No buakearo encontram-se árvores de médio porte mas resistentes quando derrubadas para abrir e fazer roça, isso quando ainda é yuku buhkuro. Encontram-se também vários tipos de cipós úteis seja para armação da casa, confecção de balaios, armadilhas de pesca e de caça. De acordo com os tipos di’ta nuhku essa área encontra-se às vezes com mata fechada e yuku puti de várias espécies (árvores filhotes/pequenas). Para os Ye’pamahsã em dehko e muhapeharo encontram-se árvores de médio e grande portes de várias espécies, acompanhados também de vários tipos de yuhku puti.
Determinados espaços di’ta nuhku são também lugares por onde circula frequentemente boraró, já descrito anteriormente; este waimahsu tem seu espaço-domínio especialmente nas nascentes dos igarapés, nos locais onde se encontram concentrações de palmeiras diversas (buritizal, patauazal, açaizal, caranazal, palha branca), serras e lugares distantes das aldeias por onde os Ye’pamahsã não costumam andar com frequência. Todos esses espaços e seres, como veremos, podem ser descritos e classificados através de bahsese específicos. Assim, nas fórmulas verbais dos bahsese, o kumu elenca os diversos elementos presentes no espaço dita nuhku. Os quatro espaços classificados (yuku buhkuro, tahtaboha, wiakaro, diakoe – mata primária ou velha, caatinga, capoeira e igapó, respectivamente) podem ser ainda subdivididos entre aqueles que já foram utilizados um dia e estão se regenerando e aqueles que nunca foram alterados ainda.
Os primeiros ainda são divididos entre os de uso mais recente e os de uso mais antigo. Importante repetir também que todos os espaços originalmente, como afirmam os Kihti ukuse ukuse são bahsakawi’í (casas) de waimahsã e que alguns espaços podem ser negociados pelos kumuã para que possam os Ye’pamahsã niato nĩrã e darato nĩrã, dehsubaato ñirã. Isto é, que vivam conforme um modo de existência coletivo e harmonioso, tanto no trabalho, quanto nas atividades de pesca, caça e coleta.
Desse modo, todos os espaços di’ta nuhku feitos e vividos pelos humanos eram antes domínios dos waimahsã e retornarão a eles quando não forem mais vividos e usufruídos pelos Ye’pamahsã. Vejamos com mais detalhes a
ocupação de cada espaço. Por esta razão abrir roça nesse espaço, retirar madeiras, cipós, requer ao kumu antecipadamente proceder ao bahsero de wetidarero (proteção), kamotasé (cerco) e nisiosé (abrandamento).
Para os Ye’pamahsã alguns tipos de árvores têm importância, por exemplo, utañimi (a sorveira) serve para esculpir o banco kumurõ – lugar onde o corpo do kumu repousa, intui, pensa e se projeta; este kumurõ atual é intimamente relacionado com o kumurõ original, de dois tipos específicos usados pelos demiurgos nas tramas narradas nos Kihti ukũse: uhta boho kumurõ (kumurõ de quartzo) e siõpuri kumurõ (kumurõ brilhante de ouro/diamante/mármore). Da madeira extremamente dura e resistente da árvore buhpo ori (árvore-flor do trovão) Se faz o yaigu, o bastão-lança insígnia de liderança, de domínio de conhecimentos e de conexão ontológica com Buhpo e que é usado pelo baya, yaí e kumu. Da mesma maneira, da palmeira buhpú (jupati) se faz imisa (pari, uma esteira) que é um elemento fundamental usado nas formulações dos wetidarese de cercamento de proteção para que a pessoa não seja atingida pelos ataques agressivos dos waimahsã e dos ñaro ahkuasetirã (os especialistas humanos com intenções malevolentes).
Para seu uso quotidiano, os Ye’pamahsã retiram também do espaço di’ta nuhku algumas madeiras conhecidas por wasõri (acaricuara) e sopisu (madeiras de lei, itaúba, karepu) para levantar suas casas; da palmeira buhpú (jupati) se confecciona imisa, kahsawu, wairó, ewá (diferentes tipos de armadilhas de pesca); três tipos principais de terra para pintura e decoração da frente e dos esteios da bahsakawii: pahsibutise (tabatinga branca), Ewupahsi (tabatinga amarela) e pahsi ñise (tabatinga preta). Os grafismos feitos com estas terras-pinturas são reprodução de imagens provenientes da miração das pessoas sob o efeito do kahpi e são associadas à viagem da embarcação dos Pamurimahsã. A classificação e distinção desses espaços e seres foram extraídas do bahsese e do kihti ukusé que são domínios dos especialistas bahserã (kumu, baya e yaí). Por serem detentores do bahsese e do kihti ukuse, estes são responsáveis pela comunicação com os super-humanos Waimahsã. Em muitas ocasiões essa comunicação é essencial para o equilíbrio e ordenamento dos seres e coisas para a boa ordem do mundo. Antes de acessar os recursos naturais, antes de abrir roça, de entrar na terra-floresta, para que as gerações possam se suceder em harmonia e equilíbrio; enfim, tudo o que envolve o bem-estar dos seres e das coisas sobre a plataforma do espaço Di’ta Nuhku depende da mediação dos kumuã junto aos Waimahsã.
Os kumuã Ye’pamahsã afirmam por meio do kihti ukũse (narrativas míticas) que, após a concepção da plataforma terrestre propiciada pelo criador Buhpó, coube aos Demiurgos Yepa Oãku e Yepario a tarefa para a formação dos diversos espaços e seres que passaram a ocupar esse mundo. Ao constatar a homogeneidade da plataforma, ambos os demiurgos se encarregaram da diferenciação de três grandes espaços superiores Ome (aéreo), Di´ta Nuhku (terra/floresta) e Ahko (aquático). Cada um deles passou a ser casas de waimahsã e, em cada casa, seu dono com os seres ocupantes (omemahsã, di’tamahsã e Ahkomahsã) ganharam papéis e funções específicas para o convívio harmonioso sobre a plataforma terrestre. Informam ainda os especialistas que sobre a plataforma terrestre, em um espaço subterrâneo, foi replicado tudo que temos sobre a plataforma. Esse espaço conhecido como Wamudia é uma réplica melhorada da plataforma onde vivemos. Dizem os especialistas que lá tudo e todos se encontram em perfeita harmonia. Não entrei em detalhes sobre esse espaço subterrâneo, visto que o ponto aqui é justamente apresentar uma descrição de Di´ta Nuhku (Terra/Floresta) sobre a plataforma terrestre.
Os bahsese são conhecimentos do kumu
Conhecimentos indígenas são discutidos no âmbito da política, ou melhor dito, da cosmopolítica. Esta discussão é resultado de conversas com parentes Ye’pamahsã. Vários foram debatedores kumuã que deram essa contribuição central ao resultado da minha dissertação, desde a época em que estive acompanhando as oficinas e encontros dos Agentes Indígena de Manejo Ambiental (AIMAs) junto com os kumua das diversas etnias do rio Tiquié. Já na minha trajetória na área de antropologia social em 2015 foi realizado Simpósio dos Kumuã, do qual participaram 11 kumuã Ye’pamahsã. Foi articulado pelos estudantes indígenas de antropologia junto com seus orientadores de pesquisa e coordenadores do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena – NEAI / UFAM.
Meus leitores mahsã mami kura, dehkokaha kura e Ya’patiri kura e enfim aos utumarimahsã dos Ye’pamahsa, vocês podem então se perguntar: o que é a ciência Ye’pamahsa? Onde situar o mundo e as categorias Ye’pamahsã dentro dessa ciência que é feita pelos Pehkasã em sua Maloca da Ciência? Este é um grande desafio para mim e para meus leitores. Enfrentei, enfrento e enfrentarei. Agora digo: enfrentaremos juntos, pois ao ler e acessar esse texto vocês também estarão conversando comigo, refletindo e por fim praticando tuoñase comigo. O que fiz é um esforço de mostrar outras categorias, outras classificações, diferentes, do que são reino animal, vegetal, anfíbio e seus superiores. Encontrarão aqui outras categorias, outras formas de classificação, sendo meu objetivo conseguir mostrar uma parcela significativa das categorias dos conhecimentos dos Ye’pamahsã.
Leitores devem estar se perguntando: então já está tudo resolvido? Já estão elencadas todas as categorias dos conhecimentos ye’pamahsã? Nada saiu de maneira equivocada? Que nada! Ainda há muitas coisas a serem completadas. Pisei na bola e continuo pisando. Todavia, este foi e é um esforço de apresentar uma parcela de como se organizam e onde estão ancorados os conhecimentos Ye’pamahsã.
Esses conhecimentos são de kumu, dos kumuã, de yaí e Baya! Dagoberto está querendo ser detentor dos conhecimentos como eles? Não, meus caros leitores. Estou embarcando em outra canoa, em outra dimensão dos conhecimentos, chamada de antropologia reflexiva. Sou um antropólogo Ye’pamahsã dedicado aos conhecimentos Ye’pamahsã. Por isso, estamos chamando o que fazemos de antropologia indígena, feito por indígenas, com base nos conhecimentos indígenas. Esse é um legado do meu trabalho. Esse estilingue do Davi, com tantas cores e sabores da língua Ye’pamahsã no texto, desafia o conhecimento da academia e exige a prática do diálogo com outros conhecimentos, ou epistemes, ainda que esses tenham pouco ou nenhum reconhecimento pelos cânones da ciência. Justamente por isso é um desafio, o desafio de pensar esquemas analíticos não ortodoxos capazes de ultrapassar a linha da disciplinaridade e das metodologias colonialistas e reducionistas, contribuindo para intervir, de forma plural, na construção da antropologia indígena na academia. O intuito é apontar para uma comunidade acadêmica epistemologicamente menos desigual e com mais respeito à diversidade socioambiental, isto é, tirar todas as consequências cosmopolíticas desta nova antropologia indígena e reflexiva.
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