Engels analisa no prefácio da quarta edição da origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1984), a passagem do direito materno para o direito paterno, e a passagem da poligamia para a monogamia, que foram “os primeiros passos” para a constituição da família ocidental patriarcal burguesa.
Como fica claro pelo título da obra, a história da família ocidental se deu juntamente com o avanço do capitalismo e do Estado, e está ligada a história da Igreja e da ciência. A família nesse contexto é uma unidade de reprodução e de produção, de indivíduos e de riquezas. A mulher aqui tinha direitos limitados, como em relação a propriedade privada; seus deveres eram de casar (o casamento como instituição jurídica do Estado), cuidar da casa e ser mãe, garantindo a reprodução. O sangue, o nome, e a terra eram do marido. O homem, podia transitar livremente pela esfera pública, e sua imagem está ligada a ideia de provedor da casa.
Ele está na esfera da cultura, da tecnologia, da ciência, do público, da força. A mulher cuidava dos filhos, da casa, e de si, para o marido. Esse modelo, mesmo sofrendo transformações, se naturalizou, e mais do que isso, se naturalizou a figura da mulher enquanto um sujeito que é mãe, e é mãe por natureza[1].
Essa família patriarcal tradicional, é substituída no contexto urbano pela “família conjugal moderna” como chama Mariza Corrêa, “onde a finalidade do casamento não é mais principalmente a manutenção de uma propriedade comum. ” (2003, p.16). Em uma abordagem mais contemporânea que Engels, Bourdieu, ao tratar sobre o que ele chama de “o espírito da família”, destaca que a família é definida não só por aparatos estatais, mas também por uma cosmologia de palavras como casa, lar, e unidade doméstica, que constroem a realidade social. Como coloca Bourdieu, “quando se trata do mundo social as palavras criam as coisas” (2008, p. 127). Criam categorias de mãe e pai. As definições de quem é o pai ou quem é mãe e o que faz de cada um deles pai e mãe são complexas e variam dependendo da realidade que for analisada. Existe tanto a mãe que cria, e não pariu; a mãe que pariu e que diz que não é mãe, seja por qualquer razão que faça com que ela não se identifique com o termo, por exemplo.
Vemos que a família dita estruturada é composta de uma parentalidade completa, ou seja, com pai e mãe, que têm posições marcadas pelo seu gênero e, portanto, obrigações diferentes. Como coloca Strathern “Existe o que podemos chamar de exigência de parentesco para a parentalidade, ou seja que a criança tenha dois pais identificáveis iguais em termos de doação genética, mas desiguais em termos dos papéis que vão representar na vida dela.” (1995, p.306).
Essa naturalização da família nuclear e dos ideais a sua volta recai sobre todos os indivíduos socializados pois é um círculo de reprodução da ordem social; porém, recai com maior peso de responsabilidade às mulheres, que são encarregadas de “salvaguardar” o que está no âmbito da natureza, e em seguida da família, dos filhos, da casa, do privado, do cuidar. A categoria do pai só é acionada nessa família tradicional no momento em que é sugerido um ato de violência e controle dos filhos, como se o pai tivesse uma autoridade que a mãe não alcança (por ser mulher).
“Ser um homem” significa que, em adição a questão específica de ter certos órgãos genitais, há a posse de qualidades que supostamente faltam as mulheres. Falar do “homem da casa” ou “do homem da família” ou “daquele que veste as calças” é falar de alguém que naturalmente é mais capaz de assumir autoridade e responsabilidade pela família. (Schneider, 2016 p.19)
Por não corresponder ao seu papel social, uma mulher que não quer ser mãe, está interrompendo a linha reprodutiva de uma família, que gera novos indivíduos e produz riqueza, que mantém a sociedade em continuidade. A mulher que escolhe não ter filhos escolhe não gerar uma nova “família”[2] . Não ter herdeiros; não perpetuar seus genes; para algumas visões “não ser mulher de verdade”. O desvio das mulheres da maternidade convencional, considerada um instinto feminino, é visto como uma negação da natureza. Dependendo dos motivos que a mulher não deseja ter filhos, como vontade de focar na carreira (novamente não é pensada a ideia do pai como um possível companheiro para dividir as tarefas domesticas), ela é pintada como egoísta[3], não disposta a dar todo o amor que recebeu dos seus pais. Na realidade, não a nada que comprovadamente faça com que uma mãe (ou um pai) sinta amor por um filho. Logo depois que ele nasce, não há nenhum dispositivo fisiológico que contamine a pessoa com um amor eterno e inabalável por um ser que precisa de 100% da sua atenção. Esse amor é socialmente construído, e faz parte dos imaginários relacionados a maternidade. Existe um grande número de mães que relatam ter se arrependido da escolha de ser mãe[4], ou se frustrado ao perceber que a maternidade não é um dom, uma benção ou um indicativo de realização pessoal.
As mulheres que abortam, que não são poucas, (mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos de idade já recorreu a um aborto na vida[5]) enfrentam todo tipo de violência verbal do moralismo que cai sobre elas, sem falar do medo, dor, e solidão que enfrentam pelo modo que essa questão é vista e tratada no Brasil; não como uma questão de saúde e escolha da mulher, mas de opiniões e padrões religiosos e morais.
O mesmo não acontece com pais que abandonam seus filhos, de um modo que a mulher não poderia fazer o mesmo, sem passar por grave retaliação. Me parece aqui, que a biologia coloca mais um problema na condição de mãe, além dos sociais que já foram apontados. Como coloca Marylin Strathern, existem “problemas naturais que a cultura enfrenta na definição do pai em contraste com a mãe. Os processos físicos da mãe garantem continuidade com o filho enquanto as relações do pai são descontinuas” (1995, p.324). Ao passo que uma mulher passa nove meses com um feto se desenvolvendo no seu corpo, em oposição ao pai que pode mudar de ideia em relação a criar e “ter” aquele filho ou não, a mulher que decide abandonar seu filho depois que ele nasceu é profundamente patologizada (seja por qualquer motivo; seja ela não ter condições financeiras e ou psicológicas, não ter ajuda do pai, não sentir o amor que a cultura diz que toda a mãe sente).
A paternidade não é tratada como uma obrigação, ela é vista quase que como uma qualidade que alguns homens têm e outros não; um modo de vida que alguns homens não se adaptaram. Porém a maternidade, desde o momento que se descobre uma gravidez, é obrigatória (em menor grau, antes também[6]). O direito de decisão sobre a continuidade dessa gravidez (aborto) é negado pelo Estado brasileiro. A mulher deve renunciar de suas outras atividades, como emprego e estudo em prol do filho, se sacrificar enquanto pessoa, por um outro ser que ainda não existe.
Cada um e encarado como igualmente relacionado ao filho. Ao mesmo tempo um dos pais é também encarado como muito mais dispensável que o outro — e o ônus da prova da existência da união recai mais pesadamente sobre um parceiro que o outro. Em suma as mulheres são as guardiãs do ideal. São elas que têm de mostrar que a procriação é um fato natural e estabelecer a possibilidade de sua criança ter um pai. (MARILYN STRATHERN, 1995, p.314)
Não é à toa que a quantidade de mães solos e mães de filhos sem o pai registrado na certidão de nascimento é grande. As mães solo chefiam 39% das famílias brasileiras[7], enquanto 5,5 milhões de crianças no Brasil não tem o nome do pai na certidão de nascimento[8].
Afinal, em que nós pensamos quando pensamos sobre maternidade? A mulher no Brasil de hoje já é inserida no mercado de trabalho e no contexto urbano, e conquistou muito mais independência do que na época que Engels analisava a origem da família. Sua vida existe muito além da casa. É perceptível, porém, que muitas dificuldades e cobranças encontradas pelas mães hoje vêm de concepções machistas que inserem os dois gêneros nesse imaginário de dicotomias como natureza e cultura/privado e público. A maternidade, claramente, passa por outras coisas que não esse valor cultural romântico. Obviamente, a maternidade é um tipo de parentesco que não pode se desfazer; é impossível ser “ex-mãe”, do mesmo modo que poderia ser “ex-esposa”. Sabemos que também é impossível ser “ex-pai”. Porém, quando olhamos para a paternidade, podemos perceber quais ônus a mulher recebe por sua cultura, e isso não é só existente por sua condição de mãe, mas porque a mãe é uma mulher e o pai é um homem.
O parentesco nada mais é do que um núcleo de relações sociais, que se são desiguais para os dois gêneros, serão desiguais dentro da família também. A ideia de violência contra a mulher está ligada a ideia de violência doméstica. Tudo isso é parte da criação de histórias maiores, do que é família no ocidente e no Brasil, a partir de micronarrativas pessoais. Quando definimos qual é a função de uma mulher, também definimos qual não é.
Yasmin Vitória
REFERÊNCIAS
ENGELS, F. Prefácio à quarta edição 1891. In: A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1994.
BOURDIEU, P. Apêndice: o espírito da família. In: Razões Práticas: Sobre a teoria da Ação. Campinas: Papirus, 2008.
CORREA, M. Repensando a Família Patriarcal brasileira. Notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil. In: Colcha de retalhos. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
SCHNEIDER, D. Parentes + “A família. O parentesco americano. Uma exposição cultural. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
STRATHERN, M. Necessidades de pais, Necessidades de Mães. In: Estudos Feministas, IFCS/UFRJ – PPCIS/UERJ, vol.3, n.2/1995.
BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu. Campinas, n 21, p.219-260, 2003.
DINIZ, D; MEDEIROS, M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência & Saúde Coletiva. Brasília, n 15, p. 959-966, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf>.
EFRAIM, E. Chefiando 39% dos lares, mães solo ainda sofrem preconceito. São Paulo: Estadão, 2017. Disponível em: http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,chefiando-39- dos-lares- maes-solo-ainda-sofrem- preconceito,70001690374 > Acesso em: 9 dezembro 2017.
EFRAIM, A. Mulheres que não querem ser mães ainda são julgadas por suas escolhas. Estadão, 16 outubro 2017. Disponível em: http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,mulheres-que- nao-querem- ser-maes-ainda-sao- julgadas-por- suas-escolhas,10000082223>. Acesso em: 9 dezembro 2017.
BASSETTE, F. Brasil tem 5,5 milhoes de crianças sem pai no registro. Exame, 2017. Disponivel em: https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem- 5-5- milhoes-de- criancas-sem-pai-no- registro/>. Acesso em: 9 dezembro 2017.
LISAUSKAS, R. Precisamos falar sobre as mulheres que se arrependem da maternidade. Estadão, 2017. Disponível em: http://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/precisamos- falar-sobre-as- mulheres-que- se-arrependem- da-maternidade/> Acesso em: 9 dezembro 2017.
Notas de rodapé
[1] Aqui, o parentesco é sempre tido como heterossexual, como discorre Judith Butler. Para isso, confira: BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu. Campinas, n 21, p.219-260, 2003.
[2] Aqui pensando família em como é dito pelo estado e pelo senso comum, onde casal sem filhos não é considerado família.
[3] Ver http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,mulheres-que- nao-querem- ser-maes- ainda-sao- julgadas-por-suas- escolhas,10000082223
[4] Ver http://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/precisamos- falar-sobre- as-mulheres- que-se- arrependem-da-maternidade
[5] Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2010 pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf>.
[7] Ver http://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,chefiando-39- dos-lares- maes-solo-ainda-sofrem- preconceito,70001690374 >
[8] Ver https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem- 5-5- milhoes-de- criancas-sem-
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