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Tender hacker

Atualizado: 19 de set. de 2023

Queer copyleft


Texto do Coletivo Esquizotrans

Dolores Galindo, Fabiane Borges e Hilan Os corpos são recursos de políticas da verdade. São lastros de identidades reconhecidas: idade, raça, classe, sexo. Os corpos são reveladores reconhecidos. Etiquetas, selos de controle – um selo de controle, supostamente, biológico e assim natural. Ao mesmo tempo, corpos são provas da artificialidade venenosa que os produz. Os discursos podem mentir; os corpos também. Burlar, sabotar, escapar. Os corpos são atravessados e atravessam a farmacopéia da verdade, saem de controle, porém, nunca inteiramente escapam às políticas que lhes perpassam, pois a microfísica do poder supõe regiões de margem.

Nas sociedades disciplinares da modernidade clássica, as estratégias de governo se voltavam à vida e aos corpos entendidos como superfícies de inscrição. Governar a população significava adestrar corpos, criar instituições, rotinas e estabelecer procedimentos para o controle da circulação de objetos e pessoas. É neste contexto que emerge e se consolida o cálculo estatístico probabilístico dando origem ao risco entendido como probabilidade de ocorrência futura de eventos danosos. O poder pastoral se volta ao corpo da população e de cada um, solicitando a vigilância contínua dos deslocamentos no espaço e no tempo: corpos sólidos, gestão.

Nas sociedades pós-disciplinares, a biopolítica envereda pela composição de corpos precários que habitam virtualidades biológicas (BRAUN, 2007). O que está em pauta são as metáforas da circulação e da comunicação que substituem a ortopedia disciplinar. Tomemos um exemplo simples – a pílula contraceptiva. A cartela da pílula (hormonal) marca o compasso da administração diária, espécie de relógio em miniatura a marcar o tempo dos fluxos menstruais, do humor, das erupções cutâneas, das metástases (PRECIADO, 2008).

No contexto dessas transformações, falamos, então, de piratarias em tenderware, ou seja, na carne, no corpo. Com esse neologismo, enfatizamos a maleabilidade. Tender: macio, sensível, suave, mole. Hardware: mecânico, rígido, recalcitrante. Quem se espanta com a cápsula ou o líquido do fármaco que se mistura venosamente quando ingerido? Enquanto na prisão – imagem emblemática dos dispositivos disciplinares – o controle é ortopédico, contemporaneamente, o controle se dá, também, de modo aberto, contínuo por meio de uma farmacopéia (PRECIADO, 2008). Ainda que pareçam opostas, tanto as estratégias de biocontrole voltadas à promoção da saúde como as práticas de transformação corporal encontram no recrudescimento da plasticidade do corpo, sua condição de existência.

Apostamos na potência produtiva da linguagem de códigos para desmontar antigas dicotomias (HARAWAY, 1996). Nesse sentido, utilizamos a expressão “piratarias queer-copyleft” para falar de agenciamentos que reconfiguram fronteiras corporais e encaixes políticos entre elementos de diversas ordens, rompendo velhos dualismos, entrecruzando relações. Como escrevem Deleuze e Guattari (1995):

É preciso um agenciamento para que se faça a relação entre dois estratos. Para que os organismos se vejam presos e penetrados num campo social que os utilize: as Amazonas não tem que cortar um seio para que o estrato orgânico se adapte a um estrato tecnológico guerreiro, por exigência de um terrível agenciamento mulher-arco-estepe? São necessários agenciamentos para que estados de forças e regimes de signos entrecruzem sua relações (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 90).

Piratarias descrevem, assim, poéticas que trabalham na confusão das fronteiras, no estabelecimento de novas combinações entre fluxos semióticos, informacionais e biológicos. O elogio à hibridação (i. e. aos processos por meio dos quais práticas discretas, que existiam em formas separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos ou práticas) é insuficiente para abordar as piratarias em tendware. Contemporaneamente, hibridizar está longe de constituir, per si, uma estratégia de resistência. Pode-se entrar e sair dos processos de hibridação. Nem sempre hibridizar-se significa romper com desigualdades e subordinações. Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência crítica dos seus limites, do que não se deixa ou não se quer ou não pode ser hibridizado (CANCLINI, 2000, p. 71).

A lenta sabotagem por meio das modificações, dos travestismos e dos hormônios fora do controle médico é parte de um movimento de retomada do corpo, de interferência, de reconfiguração não apenas com palavras e imagens, mas com hormônios e implantes. Deixar o corpo acessível aos seus usuários: tecnologia acessível a quem precisa dela, free as in press. Se vale para o seu software, vale para o seu corpo? Porque você teria que aceitá-lo sem modificações? Ou, de outro lado, porque para acessar e modificá-lo há que, necessariamente, patologizá-lo? (BUTLER, 2009).

Um momento dramático das TTT de toda natureza (Transsexuais, Travestis, Transgêneros) é quando seus corpos são avaliados pelos olhos das pessoas que decidem se eles são genuínos ou piratas. A distinção entre o genuíno e o pirata é parte das políticas da verdade: resistir a elas é tratar o pirata como genuíno. Exigir o certificado é validar o copyright e considerar que elas podem não passar no teste de qualidade é insistir na distinção entre o que é pirata e o que é genuíno. Uma alternativa é entender que os corpos podem ser também vistos como copyleft como vem argumentando vários movimentos queer-copyleft, a exemplo dos coletivos “XX boys: photography and culture” (http://xxboys.net/), “Generatech: para un agenciamiento de género en la tecnocultura audiovisual” (http://generatech.ningunlugar.org/) e “esquizotrans” (http://esquizotrans.wordpress.com/)”.

Na internet, encontramos, também, fora dos eixos dos ativismos, fotos e depoimentos de pessoas que aos poucos transformam seus genitais e sua sexualidade através de implantes, amputações, cortes, o que modifica consideravelmente as funções de alguns órgãos dos seus corpos, assim como suas sensações. Muitas vezes essas modificações tendem a fixar agrupamentos identitários, conforme as transforma-ções que se produzem no corpo. Mas, as identidades-interfaces são escolhidas – adotadas – e não reveladas. Modificar o corpo é ato de auto-pirataria e a modificação corporal avizinha-se da pirataria.

Os piratas usam distintivos que os tornam reconhecíveis como avulsos. Seus corpos não são inteligíveis na matriz habitual, eles se tatuam, se esculpem e se furam. A modificação do corpo faz dele um laboratório, um laboratório do que pode ser feito com um corpo. Quando se modifica um corpo, para além dos protocolos e prescrições e no justo limite da prudência - se adquire uma potência. A pirataria dos corpos é uma imagem para a pirataria do socius, das matrizes de inteligibilidade, das distribuições de poder.

Como as modificações corporais, os travestismos também colocam o corpo entre riscos externos aos bulários. Em 2003, S., então presidente da associação de travestis de Mato Grosso, morre em função da aplicação de silicone líquido – industrial – no tórax. Em 15 de julho de 2008, a travesti lavradora mato-grossense B. também vem a óbito pelo mesmo motivo. Entre centenas de outras histórias. Trajetórias que adquirem visibilidade, ao modo infame, isto é, quando interceptadas por aparatos de poder-saber, neste caso: o dispositivo médico (internação, diagnóstico), legal (autópsia, inquérito policial) e espetacular (mídia, notícia). B. e S. morrem no afã da posse de seios fartos. As notícias curtas de internet e mídias locais fazem falar e ver, a miserável cena espetacular. É difícil instituir resistências quando tratamos do poder sobre o corpo, biopolítica. Que fácil seria, sem dúvida, desmantelar o poder se este se ocupasse simplesmente de vigiar, expiar, surpreender, proibir e castigar, mas não é simplesmente um olho nem uma orelha: ele também incita, suscita, produz, obriga a agir e a falar (FOUCAULT, 1984, 1996).

Para cada configuração de saber-poder, corpos são configurados – o corpo heterossexual, o corpo do condenado, do/da hermafrodita. Como sondar e viabilizar resistências e saídas no próprio campo dos condicionantes, das múltiplas conexões que nos enredam? (FOUCAULT, 1996). S. e B. performam por meio da manipulação precária de uma substância, o silicone. Enfrentam-se a políticas diluídas, imiscuídas, no orgânico. Não há inimigos externos, nem tampouco, alianças às claras. É um jogo farmacológico e químico – uma ficção somática - não porque deixe de ter realidade material, mas porque se constitui por repetições performativas de processos de construção política. Se na prisão, imagem emblemática dos dispositivos disciplinares, aqui o controle é ortopédico, o controle se dá de modo aberto, contínuo por meio de uma farmacopéia. Na dose certa, remédio; em excesso ou ordenação adversa, veneno.

A leitura das notícias conduz a um agenciamento sócio-técnico permeado de seringas, cola rápida ou esmalte de unha para fechar o ponto de incisão, toalhas borradas e à circulação clandestina de um material sintético – um código político de acesso. O espaço para reconversão dá-se no corpo, mais precisamente, sob a pele. O silicone transpassará a pele, como esclarecem as distintas advertências médicas. Precariamente, S. e B. pirateiam políticas de gênero. Seriam a medicalização e a inclusão em protocolos clínicos as soluções para evitar os riscos? Ou seja, a reivindicação por uma cidadania cirúrgica ou hormonal? (CARVALHO, 2009). Tais questões, no movimento social organizado de trans, vêm sendo colocadas. Aqui, com a expressão piratarias queer-copyleft nos inserimos neste tenso campo político sem pretensão de oferecer respostas ou lançar uma palavra de ordem.

O termo pirataria remete à reapropiação – perversão de fluxos de mercadorias nos mares – muito além da classificação jurídica como roubo. Pirataria queer-copyleft, por sua vez, remete à reconversão ativa de códigos tecnobionormativos. No movimento de software ou cultura livre, que ganha força no final dos anos oitenta, piratas são alçados a figuras de borda capazes de desestabilizar as codificações que restringem a circulação de conhecimento. Ao invés do copyright (direito autoral e propriedade intelectual), o copyleft (livre distribuição de conhecimentos e tecnologias). Por deslocamento e trocadilho, à expressão todos os direitos reservados, opõe-se a expressão todos os direitos invertidos. Numa pirataria queer-copyleft, em outubro de 2006, Beatriz Preciado, teórica queer, professora universitária, que divide seu tempo entre Paris, Estados Unidos e Espanha, dá início ao uso de testosterona em gel por meio de um protocolo doméstico, o que resultará na escrita do livro Testoyonqui, publicado em 2008, onde ela escreve:

(...) Eu pertenço a este grupo de usuários da testosterona. Somos usuários copyleft: quer dizer, consideramos os hormônios como biocódigos livres e abertos cujo uso não deve estar regulado nem pelo Estado, nem pelas companhias farmacêuticas. Como se tratasse de uma droga dura, espero estar sozinha em casa para prová-la (PRECIADO, 2008).

Na auto-intoxicação voluntária de testosterona, passamos a uma pirataria que opera em um nível distinto do silicone que se dá sobre a pele – contesta os controles hormonais sob a pele. Drogas “moles” acessíveis em qualquer farmácia da esquina. Se na ortopedia disciplinar, a vigilância dá-se por meio do isolamento em celas, agora cada corpo passa a ser uma cela. O dispositivo (circular) da pílula marca o compasso da administração diária – relógio em miniatura a pontuar o tempo por meio da administração medicamentosa. Acerca do protocolo de auto-administração de testosterona, Preciado (2008) salienta que tomar testosterona não muda o sexo, pode modificar (a depender da dose), o modo como o gênero é codificado sexualmente.

Não vou dizer que sou igual a vocês, que me deixem participar das suas leis, nem que me reconheçam como parte da sua normalidade social. Mas que aspiro a convencê-los de que são, em realidade, como eu. Estamos tentados pela mesma deriva química (PRECIADO, 2008).

As piratarias queer-copyleft que mencionamos adquirem sentido num contexto no qual o corpo é uma linha privilegiada de subjetivação. No contexto das biosociabilidades contemporâneas [isto é das sociabilidades que emergem da relação entre capital, biotecnologias e medicina], tais agenciamentos operam em contraponto às práticas voltadas à normalização e obtenção do corpo e saúde perfeitos. Não é disto que falamos ao utilizamos a expressão piratarias queer-copyleft, mas, justamente, às linhas de fuga que se tenta traçar na potência em ato que é burlar, escamotear, acessar e produzir novos acessos. Nas práticas bioascéticas – apolíticas e individualistas – “perdemos o mundo e ganhamos o corpo” (ORTEGA, 2008). No caso das piratarias queer-copyleft, não se trata de personalizar o corpo por meio de novos aditivos, mas de desterritorializá-lo. A apropriação queer da performatividade parodia e expõe tanto o poder vinculante da lei heterossexualizante como a possibilidade de expropriá-la (BUTLER, 2002).

O corpo, nas auto-experimentações fora dos protocolos médicos, adquire potência na justa medida em que se liga a outros corpos e, mais propriamente, às políticas de construção. O aparato corporal, longe de ser uma superfície, é resultado de processos de materialização e negociações tensas sobre suas fronteiras (HARAWAY, 1996).

Acesso livre aos meios de produção do próprio corpo. Compartilhamento de experiências laboratoriais proliferação de saberes sobre nosso próprio código fonte. Éticas convergentes debatidas coletivamente. Aos contornos da definição de piratarias queer-copyleft, acrescentamos à inversão de códigos, uma característica, também derivada das contaminações entre políticas queer e de cultura livre – o compartilhamento e logo, o inacabamento.

Não há alternativas subversivas para “além”, “fora” ou “antes” do poder, mas linhas, agenciamentos que escapam e fazem escapar. No compartilhamento incessante há cópias e cópias, não havendo um original no qual possa ser buscada a razão de ser das modificações sucessivas. Como lembra Butler (2002), o queer (que não designa uma identidade) é para os dispositivos de normatização não o que uma cópia é para o original, mas em vez disso, é o que uma cópia é para uma cópia. Talvez, esta seja a dimensão de mais difícil compreensão, pois, as piratarias queer-copyleft não são emulações de corpos femininos purificados, mas os reinventam. Expropria-se. Apropria-se. Cria-se um código.

Referências: BUTLER, J. Cuerpos que importam. Barcelona, Paidós, 2002 BUTLER, J. Desdiagnosticando o gênero. Physis, 2009, vol.19, no.1, p.95-126. BRAUN, B. Biopolitics and the molecularization of life. Cultural Geo-Graphies 2007; 14; 6. CANCLINI, N. La modernidad después de la posmodernidad. In: BELUZ-ZO, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial da América Latina, 1990. CARVALHO, M. Para além da cidadania cirúrgica. Disponível em: http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?in-foid=6576&sid=4. Acessado em: 29/04/2009. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo, Editora 34, 1995. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1984. _____________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1985. _____________. La vida de los hombreS infames. Ensayos sobre desviación Y dominación. Buenos Aires/Montevideo: Editorial Altamira/Editorial Nordan-Comunidad, 1996. HARAWAY, D. Ciencia, cyborgues y mujeres: La reinvención de la naturaleza. Madrid: Cátedra, 1996 ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

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