Texto de Ivana Bentes
1 Introdução
Reverter a fraqueza em força. Passar da fome ao Sonho. Transformar a repressão política em exercício de Liberdade. Politizar a Fé e Celebrar o transe latino-americano como uma força singular e vital. Poucos artistas contemporâneos sintetizaram todas essas questões de forma tão complexa e original quanto o cineasta Glauber Rocha, um artista que deu um sentido afirmativo e transformador para os fenômenos ligados a pobreza, buscando reverter “forças auto-destrutivas máximas” num impulso criador, mítico e onírico.
As metáforas da fome e da devoração já tinham alimentado o modernismo de 1922, a teoria antropofágica de Oswald de Andrade e chegou atualizada pelo movimento pop-tropicalista brasileiro, nos anos 70, uma devoração típica da cultura de massas e sua "geléia geral".
Também no cinema latino-americano a fome foi tematizada, e no Brasil é um tema recorrente do Cinema Novo, que explodiu nos anos 60. A fome, diz Glauber, foi tratada nesses filmes de modo fenomenológico, social, político, estético. poético, demagógico, experimental, documental, cômico. Mas sua proposta iria além: transformar a fome em “princípio”, uma espécie de “impensado” latino americano, capaz de funcionar como motor de um pensamento, novo.
Ao invés de tentar explicar a miséria e a escravidão de uma forma puramente política e racional, Glauber lança mão da experiência mítica e religiosa e mergulha no inconsciente explodido e no transe latino-americano. Fé, Transe e Celebração são a base da sua nova política.
Dois textos-manifestos de Glauber servem como a base ética e estética para se enten2 Ivana Bentes der seu cinema e pensamento: “Eztetyka da Fome” , escrito em 1965 e “Eztetyka do Sonho” , de 1971. Neles Glauber vai da fome ao delírio do faminto, do realismo ao surrealismo, fazendo da brutalidade e do onírico a base de um novo pensamento .
“Eztetyka da Fome” é o primeiro desses manifestos e o mais conhecido, escrito em 1965, quando Glauber já tinha filmado Barravento (1961) e obtido reconhecimento internacional com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Nesse texto _ apresentado em Gênova, na Resenha do Cinema Latino-Americano, durante uma retrospectiva de filmes do Cinema Novo_ Glauber tematiza com urgência e virulência sobre “o paternalismo do europeu em relação ao Terceiro mundo” e a “linguagem de lágrimas e mudo sofrimento” do humanismo, incapaz de expressar a brutalidade da pobreza.
Em “Eztetyka da Fome” não se trata de romantizar ou glamourizar a fome e a miséria: “a pobreza é a carga alto destrutiva máxima de cada homem”, diz Glauber no seu texto, mas partir dela, como dado do presente para constituir “uma cultura da fome” , intolerável e explosiva, capaz de problematizar-se e superar-se . E a chave para essa virada, no primeiro manifesto é constituir uma estética da violência.
A questão não foi superada nem “resolvida” pela arte contemporânea latino-americana que ainda se vê enredada em aporias do tipo: como tematizar a “fome” sem fazer da pobreza e da miséria um “plus”, um charme adicional, nicho temático, entre a denúncia, o miserabilismo exótico-típico, e o paternalismo? Fome e miséria racionalizadas, explicadas, “conformadas” e entendidas como um dado “natural”, ou “decorativo”?
Voltamos a Glauber. “[A fome ] para o europeu é um estranho surrealismo tropical”, escreve, ou ainda: “Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia de primitivismo”.
A essa leitura piedosa e nostálgica da miséria, Glauber propõe uma saída estrutural. Para “compreender” a fome, dentro ou fora da América Latina, seria necessário violentar a percepção, os sentidos e o pensamento: “o público não suportando as imagens da própria miséria” (...) “Assim somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.
Essa estética da fome e seu correlato, uma ética do intolerável, atravessam de forma mais ou menos aguda, os filmes desse período: Barravento (61) Deus e o Diabo na Terra do Sol (64), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (69), o média metragem Câncer (69). Sendo que o filme Terra em Transe, de 67, trará uma nova torção no pensamento da fome, explicitando o tema do delírio, do sonho e da desrazão, o inconsciente explodido do faminto.
Lutar no território dos Sonhos
Em “Eztetyka do Sonho”, Glauber vai dar outro salto ao rejeitar a leitura sociológica da esquerda, que “racionaliza” a miséria ao encaixá-la no teatro da luta de classes, como um “mal necessário” do capitalismo, superada apenas com a supressão deste sistema. O que Glauber parece dizer é que nenhuma explicação histórica, sociológica, marxista ou capitalista, pode dar conta da complexidade e tragédia da experiência da pobreza, algo, para ele, da ordem do “icognoscível”, do “impensado” e do “intolerável”.
É esse “impensado” que leva Glauber a uma nova visada, explicitada no seu segundo manifesto, “Eztetyka do Sonho”, escrito em 1971, seis anos depois do primeiro, e apresentado aos alunos da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Texto escrito depois da experiência de filmes como Terra em Transe, Câncer, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerrreiro , além do projeto América Nuestra ( roteiro de 65/66) e do cinema feito depois da sua saída do Brasil, em 70: os filmes do exílio, O Leão de Sete Cabeças e Cabezas Cortadas.
A impotência e a perplexidade com os rumos políticos do Brasil pós-golpe de 64, a exacerbação da repressão política no país, na década de 70, a tragédia e opressão das ditaduras latino-americanas, o transe político e de consciências, a fragilidade de intelectuais, militantes, estudantes e artistas; o conformismo popular, levam Glauber a uma nova questão. Lutar não no campo da razão opressora, mas nos territórios da desrazão e do mito.
“A Estética da Fome era a medida da minha compreensão racional da pobreza em 1965”, escreve Glauber no novo manifesto: “Hoje recuso falar em qualquer estética. A plena vivência não pode se sujeitar a conceitos filosóficos. Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda.”
Glauber cita Jorge Luis Borges e Luis Buñuel para falar da necessidade uma “sensibilidade dilatada” que “elabora na mística seu momento de Liberdade”.
Eztetyka do Sonho: “A ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída. As vanguardas do pensamento não podem mais se dar ao sucesso inútil de responder à razão opressiva com a razão revolucionária. A revolução é a anti-razão que comunica tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza.”
Nem a fome pode ser “compreendida”, nem a revolução pode ser “racionalizada”. À um intolerável da experiência, Glauber responde com uma rebelião igualmente “irracional” , mística e apocalíptica. Capaz de desestabilizar toda ordem, estrutura ou sujeito.
Glauber começa a articular a relação entre misticismo, mito, religião e revolução, um movimento extremamente original no pensamento latino-americano. Nesse movimento, parte para uma desidealização do povo e ao mesmo tempo para a construção de uma mitologia popular poderosa, capaz de fazer frente a um imaginário colonizado ou colonizador: “Os Deuses Afros-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é a feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos”.
Evitando cair numa mera idealização desse povo colonizado, Glauber analisa os diferentes efeitos da fome sobre a consciência e o inconsciente popular:
“ [ A pobreza] repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística”.
Glauber vai trabalhar com essas diferentes experiências de forma original, relacionando Fé, Fome, Sonho e Transe. Em seu cinema não encontramos uma única chave de abordagem da pobreza: nem conformismo, nem misticismo serão tratados de forma “explicativa” ou “realista”. Trata-se de uma operação simbólica e mística que entrará em curso no seu pensamento e cinema.
Glauber já apontava, em outros textos, as distinções estéticas entre o realismo crítico e humanista, que produziu obras vigorosas do cinema latino, como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Os Fuzis, de Ruy Guerra, La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas e sua proposta de politização e estetização do místico, do irracional e do inconsciente:
“ (...) Há um corte naquela estrutura racional, lukacsiana, que marca o Nelson [Pereira dos Santos] em Vidas Secas, que não é um defeito, é uma qualidade, que é o vigor do realismo crítico, mas em Deus e o Diabo tem uma ruptura em que é admitida a comunicação do inconsciente”.
E ainda: “O filme [Deus e o Diabo na Terra do Sol ] é uma uma espécie de liberação da violência, através dos seus fantasmas, uma liberação do inconsciente coletivo, do camponês brasileiro, do Terceiro Mundo, através dos seus fantasmas mais expressivos que carregam em si, inclusive, os seus traços, os seus caracteres mais agressivos do arcaismo barbárico ”.
Glauber propõe em “Eztetyka do Sonho” uma nova relação entre arte e revolução. Proposta que se afasta do realismo crítico, do cinema de inspiração literária, do cinema político latino-americano dos anos 60 e se aproxima ainda mais da antropofagia modernista, do surrealismo europeu, do realismo mágico latino: Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia Marques, Jorge Amado, Luis Buñuel De L’Âge D’Or e Los Olvidados.
“A Estética da Fome era a medida da minha compreensão racional da pobreza em 1965” , escreve Glauber no início do manifesto de 1971, “compreesão racional” que será substituída por uma nova experiência e fluxo, não mais da ordem do explicativo e da razão, mas uma experiência mística, uma “mística política”, que funcionaria pelo transe, pela possessão, pela desrazão:
“A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime a bala. Para ela tudo que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo ”.
É da fome que Glauber parte para chegar a estetyka do sonho e do transe, a estética da violência e do inconsciente e a uma ética do intolerável. Mas a fome, no seu pensamento, sofre uma série de transmutações e torna-se uma metáfora do desejo e do devir revolucionário e também uma “fome de absoluto”, como brada o poeta/guerrilheiro Paulo Martins, no final de Terra em transe(1967). Glauber passa da fome ao sonho e ao transe, num movimento habilidoso do pensamento, indicando tanto o conformismo na miséria quanto explorando a carga trágica, mística e potencialmente transformadora da fome e da pobreza, através da fé popular.
2 A Revolução Mística e a Pedagogia da Violência
Misticismo e violência são também duas entradas chaves para o seu pensamento. Ao invés de trabalhar no campo da razão e da consciência, Glauber procura mostrar que toda ordem, estrutura ou indivíduo poderá ser submetida, confrontada a um transe ou crise radicais, capazes de despertar um pensamento que nasce dessa violência. E encontra esse transe em manifestações como o candomblé, o transe místico e o Carnaval, mas também na instabilidade estrutural que constitui o imaginário político latino-americano.
Glauber vai dar um sentido estético, ético e místico a palavra Revolução. Transe e crise são condições de um cinema diferencial que nasce dos impasses diante do que é “terrível demais, belo demais, intolerável”. Algo que excede nossa capacidade de reação: uma beleza ou uma dor fortes demais. Ao invésnde um pensamento ou de um cinema que tolera e suporta praticamente qualquer coisa, do exercício da crise, nasce sua pedagogia ou estética da violência. Nos seus filmes, o povo é chicoteado, espancado, amordaçado, fuzilado. Ao invés de condenar “moralmente” a violência e exploração, representa essa violência com tal radicalidade e força que ela passa a ser um intolerável para o espectador.
Não se trata de uma “espetacularização” da violência ou sentimentalização da impotência. Para Glauber, a violência é "um amor de ação e transformação". O marxismo de Glauber tem algo de sádico e histérico, de apocalíptico e messiânico. Para explodir, a revolução tem que ser precedida por um crime ou massacre. Daí seus filmes tematizarem confrontos, violências, transes, mais do que alianças ou apaziguamentos. Mesmo as celebrações em seus filmes surgem como momentos de rebeldia, anarquia e liberdade.
Em Glauber podemos falar de uma pedagogia da violência que responderia a uma questão crucial: como passar da “alienação” e passividade à resistência e atividade?
Em Terra em Transe, Glauber debocha do populismo e do pacifismo na boca de Vieira, o político populista, que brada “o sangue das massas é sagrado”. Paulo Martins, personagem do poeta e jornalista, o próprio artista dilacerado, reage: ”o sangue não tem importância. Não se muda a história com lágrimas”. Em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, antes de tomar consciência da sua subserviência, o negro Antão é espancado e humilhado. Em Câncer, Antônio Pitanga, que faz um marginal negro, se ajoelha choramingando, sacaneado por brancos e negros de todas as classes. A pedagogia da violência em Glauber forja um povo em revolta, traz um sentido ativo para a dor, um sentido externo, como em Nietzsche:
“A dor não é um argumento contra a vida, mas ao contrário um excitante da vida (...), um argumento em seu favor. Ver sofrer ou mesmo infligir o sofrimento é uma estrutura da vida como vida ativa”.
A Pedagogia da dor e da violência é, em Glauber, o primeiro momento da constituição de um povo. O que é explicitada em Terra e Transe na fala do poeta Paulo Martins: “eu bati num pobre camponês porque ele me ameaçou. Podia ter metido a enxada na minha cabeça, mas era tão covarde e tão servil! E eu queria provar que ele era tão covarde e servil”. E depois, “a caridade apenas adia, agrava mais a miséria”.
“De sangue se desenha o Atlântico", diz Paulo Martins. O Cinema Novo, tão múltiplo e singular na obra de cada um dos seus cineastas, vai tratar da violência, da miséria e do povo, de forma diferenciada. O sadismo de Glauber, sua ira-revolucionária diverge da lírica-romântica de filmes como Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos ou mesmo do classicismo humanista de Vidas Secas, também de Nelson Pereira.
Com Terra em Transe, Glauber coloca esse povo (subserviente, vitimizado, fraco) em questão com a mesma radicalidade e paroxismo com que criticou o intelectual de esquerda, Paulo Martins, um Hamlet tropical, entre banhos de sangue e exaltação poética, em estado de possessão. Esse tipo de representação crua de um povo despotencializado e assujeitado combinado com uma pedagogia da violência produziu certa animosidade na esquerda brasileira, e Glauber chegou a ser chamado de “fascista”.
Numa outra torção e afastando-se da solução “conciliatória” ou paternalista na representação das relações de poder entre diferentes classes, nos seus filmes e textos rejeita-se a posição do intelectual como “legítimo” representante do povo assim como o discurso da exaltação ou “vitimização” desse povo, comum nos anos 60. Glauber também aponta novos agentes e mediadores da cultura (o cangaceiro, o beato, o mercenário, os místicos em Deus e o Diabo ) que destituem o intelectual do seu lugar privilegiado como agente de saber e transformação.
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol , Glauber instaura discursos ambíguos. Os cangaceiros tornam-se “revolucionários primitivos” e agentes de transformação social; os beatos surgem como figuras catalizadoras de forças sociais à deriva; mercenários, como o personagem de Antonio das Mortes, podem assumir uma função transformadora e aceleradora de mudanças sociais. Antonio das mortes mata pobres e camponeses sob o comando de latifundiários e da Igreja em nome de uma “revolta radical”, a precipitação do intolerável como acelerador das mudanças.
Caráter apocalíptico e messiânico do cinema de Glauber que ecoa muitos dos aforismas de Oswald de Andrade sobre a antropofagia e a revolução como “culturas naturais” e nosso barbarismo e vitalismo violento como virtudes transformadoras.
l
Esse cinema da desestabilização e do transe marca filmes como Deus e o Diabo, Terra em Transe , O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e Cabeças Cortadas, Di e a Idade da Terra. Nesses filmes, Glauber tematiza o transe do povo faminto, mas também o que poderíamos chamar de pulsões anarco-ditatoriais da elite. Seus personagens, Paulo Martins, Porfírio Diaz, Brahms, O Cristo Militar, vivem as delícias e loucuras do poder de forma desmesurada, numa pura Hybris.
Fazer entrar em Transe ou em crise é uma das características do pensamento e do cinema de Glauber. O transe é transição, passagem, devir e possessão. Para entrar em crise ou em transe é preciso se deixar atravessar, possuir, por um outro. Glauber faz do transe uma forma de experimentação e conhecimento. Entrar em transe é entrar em fase com um objeto ou situação, é conhecer de dentro.
Eis porque seus filmes por mais “alegóricos” ou “metafóricos” que se apresentem têm a força de uma “verdade” ou melhor tem uma consistência, são críveis, as imagens não representam, entram em “transe” ou “fase” com os personagens, cenários, objetos, com o espectador, formam um só fluxo.
No cinema de Glauber acompanhamos a crise e o transe da Terra, do homem, das formações sociais. Em seu primeiro longa, Barravento, Fé e Política, Fé e Liberdade aparecem a princípio em conflito: de um lado o misticismo trágico e fatalista da raça negra, ligado a religião, de outro, a tomada de consciência da situação econômica de dependência e uma mudança e superação da dupla “alienação”. O filme, entretando, é nossa leitura, em certa medida desmente o próprio discurso inicial e ultrapassa o que Glauber admitia ser um ponto de partida “primário”: a idéia da religião como alienação.
O resultado é um marxismo tropicalizado, atravessado pelo misticismo, onde os mitos surgem ao mesmo tempo como tradição a ser superada e fator de transformação e resistência cultural. O transe e as práticas do candomblé estão presentes em Barravento não só como “mistificação”, mas como celebração, “violência plástica&sensualismo”, como experiência estética e gnose, o “barravento” (súbita mudança dos ventos, tempestade) a natureza em convulsão e transe, é a contrapartida cósmica e celebratória das mudanças sociais e políticas radicais.
No cinema de Glauber, a violência e o transe surgem ainda na paisagem tropical ou sertaneja, seja por luxúria ou aridez. A paisagem ou o meio é importante figura conceitual na “tropicologia” oswaldiana e glauberiana. Na tradição teórica brasileira, a ideia de uma dissolução do sujeito está fortemente ligada a uma espécie de dissolução na paisagem: derreter-se ou deixar-se vencer pelos trópicos.
A beleza tropical em revolta de Barravento dá lugar, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a uma terra seca, calcinada, infértil. O sertão, em Glauber, é o grande outro da civilização tropical e paradisíaca do litoral. É um território de transformações violentas, de um natureza hostil, capaz de passar da aridez extrema a exuberância extrema.
Glauber parte de um discurso de politização da natureza e naturalização da cultura na contramão dos discursos de oposição dos dois pólos. Dessa forma vemos a utilização dos elementos e cenários naturais (os desertos, o sertão, as paisagens selvagens) de forma dinâmica e atuante e uma dramatização dos cenários. Os seus personagens pertencem à terra e se confundem com a paisagem. A cultura é mostrada não como algo que se opõe a natureza, mas como a natureza continuada por outros meios.
Nessa dissolução das dualidades, o cinema de Glauber utiliza-se de narrativas alegóricas e/ou em forma de parábolas, discurso alegórico que marca a década de 60 (relacionando o antigo e o novo, o histórico e o atemporal, o mais moderno e o mais arcaico). As alegorias são materialização de conceitos. Glauber cria tipos alegóricos, não-psicológicos que se definem pela sua exterioridade e imagem: enfeites e adereços, figurinos, símbolos e ícones religiosos, e diferentes estéticas vindas do catolicismo e do folclore afro-brasileiro.
O transe em seus filmes se articula diretamente com os rituais afro-brasileiros como o candomblé (Barravento), mas também com o transe místico católico e a possessão como Em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro; o transe das consciências em Terra em Transe e Claro, o transe estético, em Di e o transe carnavalesco em A Idade da Terra. Glauber não tematiza o transe, cria cinematograficamente o transe através da câmera na mão e da montagem. O transe em Glauber é uma celebração propriamente cinematográfica.
4 Restituir a Crença no Mundo
Se há um princípio de conversão em Glauber, que opera essas torções, esse princípio é a Crença numa espécie de devir revolucionário que não se reduz a crença religiosa ou a crença na Revolução. E aqui chegamos a outra importante figura do pensamento glauberiano:
“O fato moderno é que já não acreditamos neste mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem _o amor, a morte _como se nos dissessem respeito apenas pela metade.”
É o vínculo do homem com o mundo que se rompeu. Por isso, é o vínculo que deve se tornar objeto de crença, ele é o impossível que só pode ser restituído pela crença. A crise dos valores, a crise da verdade a crise dos esquemas produz esse rompimento radical. Aruan em Barravento, o vaqueiro Manuel em Deus e O Diabo, o poeta Paulo Martins de Terra em Transe, os personagens desterritorializados de O Dragão da maldade contra o Santo Guerreiro e Cabeças Cortadas , os personagens de Glauber perderam a crença no mundo. O homem está no mundo, vê, sente, mas não sabe mais como agir:
“Restituir-nos a crença no mundo eis o poder do cinema e do pensamento moderno. Cristão ou ateus em nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo”.
Reencontramos Nietzsche e Glauber nessa proposição. É toda uma reversão da fé cristã que Glauber levará ao cúmulo num filme como A Idade da Terra, com a multiplicação do Cristo, liberado do cristianismo (o Cristo índio, o Cristo negro, o Cristo militar, o Cristo guerrilheiro). Um Cristo investido de forças desestabilizadoras, tema que iremos analisar mais detidamente quando falarmos da relação entre “romantismo revolucionário”, messianismo e marxismo.
“Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva: amor, nem lei, nem causa, nem finalidade: fatum (destino)”. Amor ao destino nietzschiano, que Glauber parece retomar em toda sua obra. Deleuze:
“Precisamos de uma ética ou de uma fé, o que faz rir os idiotas, não é a necessidade de crer em outra coisa, mas uma necessidade de crer neste mundo aqui, do qual os idiotas fazem parte ”.
O pensamento é arrebatado pela exterioridade de uma crença, para for a _de qualquer saber. Glauber arranca, como Nietzsche, a crença da fé e a restitui ao pensamento. Faz da crença um método de conhecimento, num dos mais belos movimentos do seu cinema.
Numa carta para Zelito Viana de 1978 sobre a legendagem de Cabezas Cortadas, Glauber insiste numa frase que deve permanecer fixa durante todo um plano em que o ditador Diaz II diz justamente: “Eu perdi a fé. Que enfermidade mais terrível.”
Para fazer a revolução ou instaurar o fascismo é preciso crer, paradoxo da modernidade que reduz a “pós-modernidade” a uma questão decisiva: não se crê em mais nada, o que torna a Revolução inútil e o fascismo uma aberração. Há um grande medo e desconfiança na atualidade em relação aos que crêem, seja lá no que for.
Glauber tematiza a crença em vários filmes, mas é no Dragão da Maldade contra o santo Guerreiro, que a questão ganha corpo. O Dragão é um filme sobre os desterritorializados, os descrentes, destituídos de qualquer crença, personagens que vagam procurando uma nova terra, um novo corpo.
A questão do mito e do místico é retomada sob um novo plano. A ambiguidade e negatividade de alguns personagens de Deus e o Diabo tornam-se positividade no Dragão. O impossível é restituído por uma crença. Conversão radical: Antônio das Mortes, o matador, torna-se protetor dos cangaceiros e beatos, o negro Antão deixa seu conformismo, o professor sai do seu niilismo e torna-se guerreiro, o padre torna-se revolucionário, o povo se arma.
Diante do intolerável e da miséria, Glauber constrói uma saída pelo mito e pelo místico, pela revolta em estado puro, uma estratégia, uma composição possível.
Se historicamente ou materialmente a revolução desejada por toda uma geração não aconteceu, Glauber monta seu apocalipse estético-revolucionário-cinematográfico e projeta no Brasil o seu “Parayzo Material dezenraizado” construção cinematográfica e messiânica de uma democracia mística brasileira instaurada pelo cinema e pela arte em sintonia com o econômico, o cultural e o industrial, onde “um conjunto de filmes em evolução dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência”.
O cinema de Glauber é um monumento cindido, marcado pela história e pelos mitos fundadores e instauradores do que seria uma civilização pan-americana. Constrói nos seus filmes um discurso não apenas sobre o Brasil, mas tenta esboçar um pensamento transnacional, pan-americano, luso-afro-brasileiro, ibero-hispânico, euro-latino ou tricontinental, inserindo o devir latino-americano na história do capitalismo.
top of page
Buscar
Posts recentes
Ver tudobottom of page
Comments