caminhos para um roteiro.
Texto de Stella Oswaldo Cruz Penido
As gravações para o documentário Baniwa, uma história de plantas e curas foram realizadas junto às comunidades indígenas Baniwa, povo de fala Aruak, que habita o noroeste da Amazônia Brasileira nas áreas ribeirinhas dos rios Içana e Aiari, afluentes do Rio Negro, na fronteira com a Colômbia. Segundo André Fernando, sua população atual está estimada em cerca de seis mil pessoas, distribuídas em 94 aldeias.
As comunidades indígenas Baniwa se localizam no município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Seu território é o terceiro maior do país, com mais de 109.000km², habitado por 23 povos indígenas espalhados por mais de 550 comunidades, que fazem de sua sede a cidade mais indígena do país. Também possui a maior bacia hidrográfica de águas pretas do mundo, cuja importância geopolítica vem sendo confirmada pelo aumento de militares na região. Mais de 81% da área de São Gabriel da Cachoeira é composta por terras indígenas homologadas. Segundo Berta Ribeiro (1995), a região do alto e médio rio Negro é habitada tradicionalmente, há pelo menos dois mil anos, por um conjunto diversificado de povos indígenas que falam mais de vinte idiomas pertencentes a quatro famílias lingüísticas distintas: Aruak, Maku, Tukano e Yanomami. Freqüentemente os índios da região falam várias línguas indígenas, além do português e do espanhol. Hoje, Baniwa, Tukano e nheengatu são línguas co-oficiais em São Gabriel Da Cachoeira, junto com o português.
O município de São Gabriel da Cachoeira se localiza numa região da Amazônia cuja unidade socioambiental – uma bacia hidrográfica habitada e manejada tradicionalmente por um conjunto de povos indígenas articulados entre si – é um dos maiores símbolos da sociodiversidade brasileira.
Contexto histórico Como aponta Darcy Ribeiro (1977), o vale do rio Negro é uma das mais antigas áreas de ocupação européia na Amazônia. Desde o século XVII seus índios foram submetidos a ‘descimentos’, tanto para as missões religiosas como para o cativeiro em mãos dos colonos.
Acrescentem-se a esse quadro vários surtos epidêmicos. Com o advento da exploração da borracha, a partir da segunda metade do século XIX, houve a escravização da mão-de-obra indígena para trabalhar nos seringais. Em 1914 chegaram os missionários salesianos com um projeto de colonização católica construído, sobretudo, por meio da escolarização indígena em internatos. A imposição progressiva da cultura ocidental branca e cristã, a consequente desmoralização da cultura indígena, seus rituais, suas malocas, e a proibição de que se falassem as línguas indígenas dentro dos internatos – nisso se constituiu o projeto salesiano.
De acordo com Garnelo (2003), a partir da década de 1980 o projeto colonizatório no alto rio Negro foi revitalizado mediante vários pontos. O primeiro deles foi a política militar de ocupação das fronteiras através do Projeto Calha Norte/Sipam. Seguiu-se a mudança na política de saúde indígena, com a implantação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Rio Negro, que gerou a formação de agentes de saúde indígena atuando junto aos profissionais da biomedicina de forma remunerada; e o surgimento de organizações sociais, as organizações não governamentais (ONGs), atuando em parcerias público-privadas e implementando projetos voltados para as causas indígena e ambiental.
A parceria com políticas públicas junto às Secretarias de Saúde e de Educação, associada ao montante de recursos que vem sendo repassado para diversas associações indígenas, cria novos problemas de legitimidade e representatividade dentro da sociedade Baniwa. De um lado, jovens lideranças com conhecimento, bens e poderes adquiridos fora do mundo indígena têm acesso a direitose bens da sociedade globalizada. Essa realidade é “uma ameaça permanente à ordem interna do grupo”, porque subverte a hierarquia de geração, desestabilizando a hegemonia dos mais velhos, que é continuamente ameaçada pela presença de outras formas de poder.
Nos Baniwa, o incentivo dos velhos às jovens lideranças, para se lançarem no espaço de atuação do movimento indígena é também uma estratégia de sobrevivência e garantia do acesso a bens e produtos industrializados, hoje incorporados ao seu modo de vida. Internamente, esse apoio é imprescindível para a própria atuação e reconhecimento desses jovens perante seus liderados. André Fernando Baniwa é um exemplo dessa nova liderança e busca se alinhar no equilíbrio das relações internas de poder:
Mas dentro das comunidades, do ponto de vista dos mais velhos, como você acha que eles te vêem neste teu posto de liderança?
A forma de escolha hoje não é a forma de escolha tradicional, antiga. É uma coisa copiada já dos brancos através da eleição, discussão. Antigamente, não. Quem nascia, logo ao nascimento a criança já mostrava alguma forma: aquele cordão umbilical, se passava aqui, fazia um colar aqui, então já sabia que era a pessoa certa para ser chefe na aldeia. Hoje não, é mais pela capacidade, sei lá. Que tenha um pouquinho de estudo, que tenha capacidade, que tenha um pouquinho de conhecimento fora. Não só aqui dentro. (depoimento de André Fernando no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) O documentário A pesquisa e a gravação para o documentário tiveram início na viagem ao rio Içana, em julho de 2002, por ocasião das comemorações de dez anos da Organização Indígena da Bacia do Rio Içana (Oibi), em Tucumã Rupitá, no rio Içana. Seu prosseguimento se deu no rio Aiari, em agosto de 2003, com o apoio da Associação das Comunidades Indígenas do Rio Aiari (Acira) e do Projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena (Rasi), do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), durante o encontro de Medicina Tradicional, em Ucuqui Cachoeira. A partir do amadurecimento das questões abordadas nas duas viagens foi possível produzir um segundo vídeo de trabalho (copião 2004), com o objetivo de apresentar a André Fernando, presidente da Oibi, uma proposta de roteiro e de gravações para o documentário sobre plantas e curas. Dessa forma, em novembro de 2004, já em parceria, fomos juntos a Barcelos, no Amazonas, encontrar o pajé Laureano João da Silva, tio materno de André e com quem este estava se tratando de mánhene.
No início da pesquisa, nosso objetivo era refletir sobre o DSEI do Rio Negro, sob o foco do Projeto de Hortas Medicinais e da formação dos agentes indígenas de Saúde (Oibi/Rasi/Ufam). Esse projeto Oibi/Ufam surgiu de uma preocupação, por parte das lideranças indígenas da Oibi, em diversificar a capacitação dos agentes de saúde do DSEI, cuja capacitação era totalmente voltada para a biomedicina e ignorava os conhecimentos tradicionais Baniwa de cura. Além disso, o projeto buscava uma discussão sobre o uso de plantas medicinais, um saber ancestral Baniwa que sofria o risco de desaparecimento, resultado do desinteresse das gerações mais jovens.
Depois das viagens às comunidades de Tucumã Rupitá e Ucuqui Cachoeira, em 2002 e 2003 respectivamente, novas questões se colocaram para a narrativa fílmica: não se tratava de listar a que sintomatologias as plantas respondiam, nem de fazer uma análise de quanto o discurso biomédico dos enfermeiros e profissionais de saúde que atuam na região, nos serviços de saúde do DSEI do alto Rio Negro, estava sensibilizado para a questão da atenção diferenciada à saúde indígena. Não focalizamos tampouco a atenção, na compreensão Baniwa, das doenças do branco trazidas pelo contato. André Fernando estava doente, com mánhene, uma doença tradicional Baniwa, e compreender essa realidade nos levou a delinear o roteiro de uma história de plantas e curas na sociedade Baniwa do Alto rio Negro.
A partir daquele momento, tornou-se imprescindível compartilhar com André Fernando o roteiro do documentário e tê-lo como parceiro na construção daquela situação que procurávamos interpretar. André Fernando aceitou ser o fio condutor do documentário, cuja estrutura narrativa seria construída a partir da sua trajetória como liderança indígena. Corajosamente, expôs-se à câmera, relatou sua doença, os sintomas e o perigo que estava enfrentando. A atitude reafirmou seu compromisso de líder no movimento indígena. Sempre ficou claro que seria bastante positivo exibir o documentário para a comunidade Baniwa, sobretudo para os alunos da Escola Indígena Baniwa e Curipaco EIBC (Escola Pamáali), situada no rio Içana, próximo a Tucumã Rupitá. A projeção do vídeo ocorreu em junho de 2007 no pátio da escola, durante as festas da formatura da terceira turma de alunos da EIBC. Essa escola foi concebida para formação de lideranças e finalização do ensino fundamental. Expor aos alunos as contradições e dificuldades enfrentadas por André Fernando em sua trajetória de liderança no movimento indígena serviu como alerta e favoreceu a conscientização desses jovens Baniwa a respeito dos problemas enfrentados por seu líder, em um momento de retomada do movimento indígena rionegrino. Roteiro No documentário, buscamos refletir as representações de cura junto aos Baniwa do alto rio Negro, sob o ponto de vista de um personagem. Foi com base no depoimento de André Fernando Baniwa e nos conflitos decorrentes desse momento de contato interétnico, no início do século XXI, que construímos a narrativa do documentário: as contradições vivenciadas pelo personagem para implantar novos projetos que desafiem os Baniwa a reproduzir e recriar seu modo de vida tradicional, direcionando sua atividade produtiva para uma autonomia econômica e política. André, como presidente da Oibi, é o principal articulador dos projetos e movimentos reivindicatórios. O sucesso de seu trabalho em projetos de desenvolvimento sustentável – como o Projeto Arte Baniwa, desenvolvido em parceria com a TokStok de São Paulo para a venda da cestaria – e na participação das políticas públicas de educação e saúde, tem gerado conflito junto os parentes, que o acusam de não ser justo na distribuição de cargos e salários trazidos pelos projetos. As desconfianças podem gerar ‘envenenamentos’ e outras doenças, nessa política de parentesco: Esse é o remédio que eu usei para o André quando ele estava doente. Você é que cuida dele aqui? Sou eu mesma e a mãe dele. Esse aqui também é outro remédio para quem tem inveja dele. Como é que você faz? Tira e coloca na bolsa. Ninguém faz mal para ele ... quando vai num lugar assim como na Assembléia, reunião. Porque tem gente que quer fazer mal para o outro. Aí leva esse que não vai acontecer nada. (Depoimento de Claudia Miguel, esposa do André, no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) André Fernando representa o elemento catalisador da transição entre esses dois mundos, e adoece. Foi este o eixo dramático do vídeo:
Quando eu fui para a Colômbia, lá me atacou de novo [o mánhene], a quarta vez ... Tinha um pajé no caminho que me contou tudo, parecia que alguém estava contando isso para ele. Só que eu tinha sonhado antes que eu estava aqui vivo, mas que ao mesmo tempo meu corpo estava no túmulo. Isso no meu sonho. E quando eu voltei da Colômbia, de Puerto Carreño para Puerto Ayacucho, eu saí para procurar comer alguma coisa tipo na feira, assim. E esse pajé estava lá. E não me lembro qual era a etnia dele, mas era um indígena também. E quando me viu, me chamou. Ele falou que não era para falar nada e que só ele ia falar e só depois eu podia falar. Porque ele disse que eu não confiava nele. Aí ele contou para mim: “Olha, você está doente. Você é perseguido, todos os seus inimigos sabem onde você está andando, quando você está fora aproveitam de você para piorar, você está marcado para não voltar para sua casa”. Ele disse que era pajé, mas fez leitura na mão. Ele sabia tudo. O ano que eu comecei a trabalhar, por que as pessoas estão fazendo assim; não porque eu faço mal para as pessoas, mas por inveja. Ele falou todas as coisas que eu poderia resumir para ele. Com isso ele fez eu pensar e disse que podia me livrar daquilo. Então eu pedi para ele fazer o trabalho e assim consegui voltar para casa. Mas eu estava mal naquele momento. (Depoimento de André Fernando no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) Segundo Garnelo e Fernando (s.d.), o termo mánhene, que podemos traduzir por ‘veneno da região’, “é uma importante categoria de doença e um tipo de bruxaria, que conota, simultaneamente o envenenamento da comida, da bebida, de objetos pessoais e orifícios naturais de um inimigo e os sintomas provocados por essas substâncias no corpo da pessoa”, e visa matá-lo. O mánhene é considerado a mais grave e freqüente das doenças tradicionais Baniwa. Todos estão sob o risco constante de envenenamento. Um caso de envenenamento representa sempre uma ameaça coletiva, e ações terapêuticas como jejuns e restrições alimentares, além de rezas e consulta aos pajés, visam a cura do doente e o restabelecimento da ‘ordem cósmica’. Só que antigamente os velhos sabiam pra que usar isso. Eles praticamente usavam pros inimigos mesmo. Mas hoje, analisando tudo isso, a gente já não vê esse controle de pessoas. Qualquer pessoa que eles acham que faz alguma coisa mal ou errado pra ele, já estão envenenando, já estão mandando soprar, já estão fazendo alguma coisa mal. Antigamente os velhos não. Eles só faziam mal quando era uma coisa grave mesmo. Assim à toa não. Eles podiam estar fazendo dabacuri deles, festa deles, capotavam, dormiam por aí pela calçada ou fora de casa, não precisava estar trancando a casa porque a casa deles não era nem de porta, mas eles nunca ficaram doentes. Hoje não! Você tem que ter cuidado por onde você anda, você tem que estar sempre desconfiando das pessoas.
Você também?
Eu também. Eu não vou negar. Porque isso é o que meus pais me orientam. Olha, pode não estar andando ... porque algumas vezes eu já tive problema de veneno na minha família, na comunidade mesmo, sem a gente sair. Então a gente tem que ter sempre cuidado. (Depoimento de Madalena Paiva, professora da Escola Indígena Baniwa Coripaco/EIBC no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) Para Garnelo (2003), um caso de mánhene é seguramente o evento patológico mais angustiante para os Baniwa, e também o mais frequente: “Mais do que qualquer outra doença, a ocorrência de um caso de mánhene representa sempre uma ameaça coletiva, um sinal agudo de distúrbios cósmicos e políticos que ameaçam a ordem do mundo” (p.70).
Na tradição Baniwa o pensamento mítico é o núcleo central que ordena as idéias e práticas referentes às doenças e curas e dá significado a elas. A importância dessa doença pode ser avaliada pelo fato de a primeira morte no mundo ancestral ter sido provocada por veneno. A origem dos venenos remete a Kowai, que os deixou no mundo como vingança por seu assassinato. Para André, essa situação é encarada naturalmente:
É previsível isso para qualquer um que vai entrar nisso.
Como assim?
De sofrer, de ser perseguido, de ser atacado. Isso é para qualquer um, na nossa sociedade é assim ... Alguém precisa sofrer, alguém precisa passar por essas dificuldades. Eu sei que dentro da nossa sociedade ninguém quer sofrer de graça ... No conjunto da sociedade indígena é assim, só entra quando tem um pagamento ... Encarar o desafio de construir as coisas, são poucas pessoas que fazem isso. Então isso para mim estava claro ... Na hora do sofrimento eu acho que ... eu prefiro morrer. Sei que um dia vou morrer mesmo, e tento encarar como uma coisa que faz parte da construção política, e que se eu conseguir superar isso eu vou continuar. (depoimento de André Fernando no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) O movimento do contato é de individualização. André chegou a tentar, sem sucesso, os recursos da biomedicina. Fez exames laboratoriais em Manaus para, afinal, chegar à conclusão de que “a gente sabe que é doença tradicional”. Podemos concluir, a partir dessa pesquisa, que entre os Baniwa não se modificou a forma de regulação de seus conflitos e das contradições que permeiam o campo do parentesco. São os saberes míticos que informam suas concepções de doença e cura. André procura seu tio materno, o pajé Laureano João da Silva, para se tratar. É o pajé que tem o entendimento da origem e da manutenção da doença neste mundo. Esse poder fundamenta-se no conhecimento extenso e na compreensão da mitologia. Os pajés completam seu aprendizado após um longo período de jejum e iniciação.
Para estudar para pajé a gente tem que ser pessoa comportada. É como num curso mesmo. Tem que perguntar se quer ser pajé ou kumu ... porque quem quer ser pajé tem que agüentar jejum de cinco anos. Cinco anos ... não tem que estar com moça, não tem que comer assado, nem bebida quente como café, mingau, nada! Não tem que brincar muito com qualquer um. Tem que ser pessoa legal. Tem que se comportar muito.
Às vezes, eu fico limpando tudo e tenho dúvida dele, do pajé. Limpo tudo aqui. Deixo o paciente sentar para ele jogar água. Aí é que aparece pedaço de pau ou pedaço de pedra. Você não quer acreditar mas está aqui! Você viu que ele não tem pedra, nem nada. Ele trabalha assim com um calçãozinho. Não tem onde ele guardar. Aí eu acreditei nele. Depois eu falei para meu pai [que respondeu]: “Ele tem poder devido a ele fazer jejum durante cinco anos. Aí, ninguém pode dizer que ele está enganando”.
Mas tem outros pajés que enganam, que querem ganhar. Aí o paciente não salva. Aquele que é próprio pajé, depois de uma hora ele [o paciente] melhora e pode banhar. (depoimento de Paulino Andrade Montenegro, agente de saúde de Araripirá Cachoeira, rio Uaraná, no documentário Baniwa, uma história de plantas e curas) De acordo com Wright (1996), o pajé é o ‘guardião do cosmos’; o responsável pela manutenção da ordem cósmica. Os pajés têm o poder de recriar e sustentar o cosmos e impedir sua destruição mediante suas viagens e sua intervenção a favor da humanidade.
Os pajés têm a tarefa vital de sustentar a vida ordenada, de impedir a morte do mundo e de curá-lo constantemente. Esses ‘pajés de verdade’ são capazes de curar todas as doenças mais graves.
Os pajés têm um lugar diferenciado por transitarem entre o ponto de vista humano e o dos seres da natureza, ocupando posições simultâneas num e noutro espaço social. Segundo Viveiros de Castro (1996, citado em Garnelo, 2003, p.31), haveria uma ‘socialidade englobante`, da qual a natureza é parte de uma sociedade cósmica onde coexistem humanos, plantase animais ... Para os ameríndios a condição humana seria a ‘forma geral do Sujeito’, humanos e não-humanos partilhariam a mesma essência, mas difeririam no modo de perceber e atuar sobre o mundo, em função da especialidade de seus corpos. Conforme narrado pelo pajé Manuel da Silva, o Mandu de Uapuí Cachoeira (Acira, Foirn, 1999, p.181),
Os pajés cheiram pariká, depois eles vêem com pariká ... Os pajés podem ficar como o mestre do mundo, em seu pensamento. Eles fazem o mundo. Eles podem e têm em seu pensamento poder. Assim, eles pensam por todo o povo ... eles fazem as pedras, eles fazem a madeira, eles transformam tudo com pariká. Eles se transformam em madeira, em onça, se transformam em jacaré, em boto, em urubu, tudo isso em seu pensamento – eles se transformam em pessoas também ... então eles são capazes de conhecer o mundo. Pois parece que é o pariká que transforma. Mas esse é nosso remédio de antigamente, e é por isso que não precisamos de remédio de branco. Pois é nosso desde sempre, do povo, os nossos remédios, e todo nosso conhecimento, tudo isso, seja o que for sobre o mundo... Procedimentos de filmagem Interessava ao documentário a visão de mundo do personagem, o olhar sobre o mundo e sobre si mesmo, mostrar os conflitos e as ações. Pensar o momento presente, o presente do mundo Baniwa levando em conta que, como qualquer filme, nosso documentário seria parcial e subjetivo.
O documentário não se apresenta com um desfecho espetacular da história do personagem. Pelo contrário, fica em aberto, e na última fala do filme seu Laureano diz: “a doença é forte, mas não vai acontecer nada”, e, na última seqüência, quando seu Laureano reza por André, é o ‘evento fílmico’ que coloca o espectador em contato com o conhecimento do pajé. Filmamos o que havia para filmar. Não há interpretação nesse evento fílmico. Sua fala não é um veredicto, é uma verdade provisória que acontece ali em Barcelos, no quintal da casa onde seu Laureano vive com as filhas e os netos. Compartilhamos juntos esses momentos do mundo Baniwa com os espectadores Baniwa e não Baniwa.
O que foi filmado é algo que também não é visível, que talvez não esteja ao nosso alcance, mas que está presente fora do campo da imagem e ao mesmo tempo presente entre eles, André e seu Laureano, em seus corpos.
Conclusão
Os principais beneficiários da temática deste documentário foram as comunidades indígenas brasileiras detentoras de saberes tradicionais. Indiretamente, toda a sociedade brasileira se beneficia com a ampliação deste debate. O vídeo pretende propor e ampliar a discussão sobre a biodiversidade brasileira, pois são os povos indígenas os principais detentores desses saberes. A reflexão sobre este momento histórico brasileiro, o incentivo ao resgate dos saberes tradicionais, a discussão de suas contradições e dos interesses envolvidos suscitam a ampliação do universo de cura e não um embate entre saberes. O documentário aponta para a necessidade de adesão a esta parceria: estar atento à perenidade desse conhecimento indígena. O fortalecimento dos povos indígenas se efetuará pelo ressurgimento da confiança em sua própria cultura.
Fonte: PENIDO, Stella Oswaldo Cruz. Koame wemakaa pandza kome watapetaaka kaawa (Baniwa, uma história de plantas e curas): caminhos para um roteiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, suplemento, p.305-316, dez. 2007.
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