Por João Pedro Gonçalves
Há vinte anos, mais exatamente no dia 2 de fevereiro de 1997, Chico Science bateu seu Fiat Uno num poste enquanto dirigia em alta velocidade no Complexo de Salgadinho, localizado na divisa entre Olinda e Recife. Com apenas trinta anos, morre um dos maiores expoentes musicais dos anos noventa, que apesar de ter deixado um legado imensurável na música e no debate a respeito dos paradoxos da sociedade pernambucana, ainda possuía muito a contribuir na cena musical e até no pensamento social brasileiro.
Com sede de transformações sociais, fascinado, mas ao mesmo tempo indignado com as contradições do capitalismo e da contemporaneidade, vivendo na quarta pior cidade em qualidade de vida no mundo, onde metade da população residia em favelas nos anos oitenta e noventa¹, Chico encontra no submundo cultural Recifense a banda “Mundo Livre S/A”, liderada por Fred Zero Quatro, principal idealizador do movimento Manguebit².
Assim como Chico Science, Fred fazia menções ao mangue, estabelecendo contrapontos e analogias entre o homem e o caranguejo, a cidade e o mangue. Sua principal inspiração foi retirada principalmente do único romance do grande cientista pernambucano Josué de Castro, “Homens e Caranguejos”, que conta a história de vida de um garoto pobre, que logo é jogado no mundo de miséria e lama do mangue, onde precisa trabalhar em uma comunidade na qual as estruturas do feudalismo agrário e do capitalismo se aglutinam. Em virtude dessas circunstâncias, o autor faz a analogia entre o menino e o mangue:
Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar dessa crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos. (CASTRO, Josué, 1966, Pag. 12)
Josué de Castro é citado posteriormente por Chico Science na música que dá nome ao álbum, “Da Lama ao Caos”:
“Ô Josué eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”
Então, para eternizar e oficializar o movimento Manguebit, e tornar “mangue” um conceito, Zero Quatro escreve e distribui em 1992 o manifesto do Mangue, intitulado “Caranguejos com Cérebro3”, que em apenas duas páginas, enaltece o mangue, faz críticas ao positivismo e ao conceito de metrópole enquanto a descreve e a relaciona com o mangue, apresentando analogamente os principais símbolos e objetivos do Manguebit. Para ilustrar, eis alguns trechos do manifesto:
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
(…)o desvario irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
(…)O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Antena Parabólica fincada no Recife. (Fonte: modulação.wordpress.com O Recifense e a Contemporaneidade)
Em consonância musical, teórica e intelectual, com Zero Quatro, Science assina embaixo do manifesto, e os líderes do “Mundo Livre S/A” e “Nação Zumbi” respectivamente, agora também encabeçam um movimento cultural de grande impacto, principalmente para o underground do universo artístico recifense, onde nas periferias, em cantos obscuros da cidade, às margens do rio Capibaribe ou onde quer que fosse mais barato o aluguel para marcar uma festa, o som do Mangue ecoava e se expandia, até a explosão de “Da Lama ao Caos” em 1994, quando “Chico Science e Nação Zumbi” apareceram para o mundo.
Trecho do Jornal do Commércio de 16 de Janeiro de 1997, publicado duas semanas após a morte de Chico Science. (Fonte: Biblioteca Nacional Digital)
Em relação à repercussão do Manguebit, é interessante notar que havia no contexto da década de noventa no meio artístico pernambucano, um grande culto à cultura popular local, que sustentava em parte o medo da globalização crescente, que aproximava cada vez mais ao Brasil o universo da música estrangeira, seus samplers, guitarras e outras tecnologias e técnicas musicais. Ariano Suassuna, grande ícone não só da literatura, mas da arte pernambucana como um todo, compartilhava e pleiteava com veemência esses ideais de uma arte local e pura até seu falecimento há quase três anos. Apesar de mais tarde endossar a arte de Chico Science – ou Chico Ciência como costumava o chamar – e até firmar com ele um reconhecido vínculo de amizade, Suassuna se mostrava refratário à suas práticas num primeiro momento. Em entrevista concedida à Folha de São Paulo4 para Vandeck Santiago, Ariano Suassuna explica porque excluiu Science de um projeto cultural em 1995: “(…) a fusão do rock com ritmos populares nordestinos, feita por Science, em vez de apoiar, prejudica a cultura popular”. Ainda sobre esse relacionamento, o jornalista pernambucano Xico Sá, amigo de Science, faz uma colocação dotada de graciosidade: “Era uma provocação de artista pra artista que foi muito interessante pra cidade. Eles faziam parte de uma cena cultural muito forte e viram que uma coisa não eliminava a outra. O Chico colaborou mais pro pensamento do Suassuna do que o próprio purismo do movimento armorial”.
Em resumo, fica evidente o tamanho colossal do espiritualismo de Science e de sua contribuição para a cultura pernambucana e brasileira. Um homem que há vinte anos deixou o Recife em um verdadeiro estado de calamidade, incrédulo com sua partida. E mesmo com seu sincretismo escarrado da cultura popular nordestina, com elementos musicais novos e importados, conseguiu cativar o genial Suassuna, um de seus maiores críticos, e foi capaz de trespassar sua irredutível teimosia.
Ariano Suassuna e Chico Science Representados em Bonecos de Olinda (Fonte: Autor, tirada de um banner próximo ao Marco Zero do Recife)
Revista Ciberlegenda/UFF – Ano 10 – número 20 – junho/2008 MANGUEBEAT E A CONSTRUÇÃO DA CULTURA EM REDE. NERCOLINI, Marildo José.
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